Folha de S. Paulo


crítica

Historiador cria obra-prima sobre Hitler, 'ícone popular do terror'

O austríaco naturalizado alemão Adolf Hitler (1889-1945) foi provavelmente o mais maligno ser humano que passou pelo mundo, e isso explica por que ainda exerce considerável fascínio. Dezenas de milhares de livros foram escritos sobre ele, e essa recente biografia é mais uma prova dessa atração.

Hitler trouxe "mais desgraças para nosso mundo do que qualquer outro, em todos os tempos", afirmou o escritor austríaco e judeu Stefan Zweig (1881-1942), exilado no Brasil. Afinal, Hitler foi o principal responsável por desencadear a Segunda Guerra (1939-1945).

"Hitler transformou-se em um tipo de 'ícone popular do horror' que, colocado em cena com alarde marqueteiro, promete os efeitos mais horripilantes", escreveu o historiador Volker Ullrich na introdução do primeiro volume da biografia do líder nazista.

A introdução é uma das partes seminais do livro, em que o autor analisa a historiografia e as biografias de Hitler, e dá o esboço da sua obra, que, em suas palavras, não fornece "uma interpretação completamente nova".

Pode ser. Mas a nova biografia foi baseada em boa parte em fontes inéditas ou pouco utilizadas, e busca sintetizar o conhecimento –as "engrenagens da pesquisa não pararam"–, além de "mostrar Hitler como um ser humano". O que "não significa despertar simpatias por ele, ou mesmo minimizar seus crimes", escreve o autor.

Associeted Press
Multidão saúda o ditador nazista Adolf Hitler, que desfila em carro pelas ruas de Munique em 1933
Multidão saúda o ditador nazista Adolf Hitler, que desfila em carro pelas ruas de Munique em 1933

A introdução poderia ser editada como um ensaio independente. Por isso é triste que tenha se tornado parte do mais lamentável erro de edição do livro. As notas referentes à introdução não foram publicadas, apesar de, no final da obra, haver mais de 200 páginas de notas. Bons tempos aqueles em que notas de rodapé ficavam no rodapé.

Outro erro está na contracapa: ali se diz que ele chegou ao poder em 1939, seis anos após a informação real, 1933.

Cria do momento histórico ou agente dele? Como a civilizada Alemanha se rendeu ou aderiu ao nazismo? Questões complexas mostram por que praticamente todas as mais sérias biografias são enormes. Este primeiro volume de Ullrich tem pouco mais de 950 páginas, e as principais obras prévias sobre o líder do Terceiro Reich são igualmente gigantescas.

Exemplos são "Hitler: Um Estudo sobre a Tirania", do britânico Alan Bullock, publicado nos anos 1950; "Hitler - Uma Biografia", do alemão Joachim Fest, obra dos anos 1970; e os dois volumes de Ian Kershaw, "Hitler 1889-1936 Húbris" (1998) e "Hitler 1936-1945 Nêmesis" (2000).

Na introdução, Ullrich comenta a diferença de foco entre essas clássicas obras anteriores –por exemplo, Bullock teve precoce acesso aos documentos usados no julgamento em Nuremberg e, por meio deles, criou a tese de que Hitler era um "oportunista totalmente desprovido de princípios".

"Podemos acusar Hitler de muitas coisas, exceto de uma: ele jamais escondeu suas verdadeiras intenções", diz Ullrich. Em livros, artigos e discursos, Hitler deixa claro que pretendia rearmar a Alemanha repudiando o tratado de Versalhes imposto pela derrota na Primeira Guerra, "remover" os judeus da Europa (via emigração e, se necessário –como aconteceu–, o genocídio) e obter "espaço vital" para o povo alemão às custas da Europa oriental, ao mesmo tempo eliminando o odiado comunismo e escravizando os eslavos da União Soviética.

Fest, um jornalista, não pesquisou muito em arquivos históricos, dependendo mais da literatura então publicada. Mas produziu um livro bem escrito e com uma excelente descrição da personalidade de Hitler, e que deixou os historiadores profissionais invejosos pela qualidade e pelo sucesso.

Kernshaw teve acesso a mais fontes primárias não disponíveis a Bullock –como os diários do ministro da propaganda alemã, Joseph Goebbels–, mas optou por colocar a personalidade do líder nazista em segundo plano, dando mais destaque às condições sociais que permitiram que esse demagogo psicopata tomasse e ficasse no poder.

Nos quase 15 anos passados desde o segundo volume de Kernshaw, as tais "engrenagens" da pesquisa produziram informações novas sobre assuntos bem diferentes: a relação de Hitler com a arte e a arquitetura, os livros que leu, sua amizade com a família do músico Richard Wagner e seu relacionamento com mulheres –notadamente sua sobrinha, Geli Raubal, que se matou provavelmente por culpa do tio–, e sua paciente e dócil amante novinha, Eva Braun.

Ullrich produziu uma obra-prima. Pena que sua edição brasileira, apesar de uma boa e fluente tradução –teve quatro tradutoras– tenha tantos erros bobos de revisão. Felizmente, nenhum deles chega a comprometer a compreensão do livro.

ADOLF HITLER - VOLUME 1
AUTOR: Volker Ullrich
TRADUÇÃO Renata Müller, Karina Janini, Petê Rissatti e Simone Pereira
EDITORA: Amarilys
QUANTO: R$ 169 (976 págs.)

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CURIOSIDADES 10 coisas pouco conhecidas sobre Adolf Hitler

1 - Hitler era vegetariano, mas permitia que outros comessem carne ao seu lado na mesa. Ele os chamava de "comedores de cadáver"

2 - Ele nasceu na Áustria, lutou no exército alemão na Primeira Guerra (1914-1918), perdeu a nacionalidade austríaca e ficou anos apátrida até conseguir a cidadania alemã

3 - Hitler adorava automóveis e decorava seus modelos e suas fichas técnicas. Mas não sabia dirigir, tinha motorista

4 - Ele adorava doces, especialmente recheados com creme, o que lhe causou sérios problemas dentais. Em compensação, bebia álcool muito raramente

5 - Outra mania era o cinema. Ele queria ver os filmes antes de lançados no circuito. Suas residências tinham salas de projeção próprias

6 - Um médico judeu, Eduard Bloch, cuidou dele e de sua mãe quando ela teve câncer e morreu na Áustria. Quando Hitler anexou a Áustria, protegeu o médico de perseguição

7 - Ele adorava cães como Blondi, que ele envenenou na véspera do seu suicídio, tanto para testar as cápsulas de veneno como para impedir a captura do animal pelos soviéticos

8 - Ele planejava remodelar Berlim e mudar o nome para Germânia. Um eixo monumental incluiria uma cúpula cujo interior seria sete vezes mais espaçoso que a catedral de São Pedro, em Roma

9 - Hitler não gostava de viajar ao exterior. Recusou convite de nazistas argentinos para vir à América do Sul, mas preferiu ficar na Alemanha para não perder contato com o cotidiano político

10 - Ele sobreviveu em Viena vendendo cartões postais e quadros de lugares turísticos. Sua renda aumentou quando uma galeria de propriedade de judeus passou a vender suas obras

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Leia trecho do livro:

Adolf Hitler era um aluno brilhante, capaz de atender também às exigências da escola primária de Leonding e que só levava notas excelentes para casa. "O aprendizado ridiculamente fácil na escolja me proporcionava tanto tempo livre que passei mais tempo ao sol do que no quatro", escreveu Hitler em Mein Kampf (...). Com os meninos da região, Hitler brincava de jogos de guerra, nos quais ele gostava de assumir o comando. (...) "Nós, de Leonding, éramos os bôeres, sob o comando de Hitler (...)".


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