Folha de S. Paulo


O museu do ABBA é uma compilação de fatos aleatórios e bizarros

Åke E:son Lindman
Cortesia do Abba: O Museu
Cortesia do ABBA: O Museu

Se você não conhece Estocolmo, a capital da Suécia, recomendo fortemente que vá dar uma olhada no lugar. A cidade foi construída sobre um conjunto de 14 ilhas, ligadas por pontes que são uma delícia percorrer de bicicleta. Talvez a mais impressionante e esquisita dessas ilhas seja Djurgården, cujos imóveis são quase que exclusivamente ocupados por museus. É onde fica o Skansen, um espaço a céu aberto que funciona como zoológico e museu de arquitetura. Há também a Thielska Galleriet, uma galeria de arte dedicada às obras do final do século 19 e início do século 20. Há o Museu Nórdico, cujo objetivo é preservar a história da região, e o famoso museu marinho Vasa. E tem também o ABBA: O Museu, que é exatamente o que o nome anuncia.

Significativamente, ABBA: O Museu também funciona como o Hall da Fama da Música Sueca. A Suécia é um país de apenas dez milhões de habitantes, coisa que torna mais impressionante ainda a capacidade do país de soltar no mundo artistas tão diferentes entre si quanto Robyn, The Knife, Entombed, e Refused (todos os quais são homenageados de alguma maneira no museu). Mas cada um desses artistas ocupa apenas alguns centímetros em uma sala cujas dimensões provavelmente equivalem a ¼ do museu do ABBA. O que é basicamente uma afirmação, por parte do governo sueco, de que, se você juntasse absolutamente todos os bons músicos já surgidos e que ainda surgirão no país, eles ainda não teriam a mesma importância que o ABBA na história da música sueca.

Åke E:son Lindman
Cortesia do ABBA: O Museu
Cortesia do ABBA: O Museu

Hoje em dia, muitos dos mais requisitados artesões de canções da música pop são, em vários casos, suecos, mas eles são quase todos personagens que operam nos bastidores. Pessoas anormalmente talentosas como Max Martin, Shellback acabam todas entregando suas músicas pop bizarramente contagiantes a lindos cantores e cantoras pop americanos, para que assim possam se tornar sucessos. O ABBA é um avatar de uma época mais simples, mais gloriosa da história musical de seu país, em que cancionistas despretensiosos e caseiros podiam se juntar com suas parceiras razoavelmente atraentes, e cantar eles mesmos a droga da música, com todo mundo usando botas de salto alto e roupas com lantejoulas, abrindo sorrisos maníacos sempre que uma câmera passava por perto. Até mesmo a nulidade das letras do ABBA mostrou-se, com o passar dos anos, uma grande vantagem para a banda. Foi o que permitiu que "Dancing Queen" se tornasse um hino gay, e é um dos motivos de Mamma Mia! funcionar tão bem como um musical. É fina a linha que separa a composição de uma música sobre coisa nenhuma e a de uma música que pode ser sobre qualquer coisa, e o ABBA a percorreu lindamente.

Acredito que a história será gentil com o ABBA; pois, na verdade, o ABBA já escreveu uma parte grande pra caralho dela. ABBA: O Museu moderniza e "museifica" o arco básico da banda - essencialmente, os principais caras de duas das maiores bandas da Suécia se tornaram melhores amigos, e então cada um deles se casou com uma cantora famosa, e aí eles viraram uma banda que soltou sucesso atrás de sucesso, até que todo mundo se divorciou, e então, 20 anos depois, o Mamma Mia! Aconteceu, e todo mundo no ABBA ganhou quantias ridiculamente enormes de dinheiro. Há a exposição sobre o ABBA pré-ABBA, cujos itens mais notáveis são metade dos veículos em que as antigas bandas dos integrantes Björn Ulvaeus e Benny Andersson, The Hootenanny Singers e The Hep Stars, haviam saído em turnê —no sentido de que alguém cortou ao meio os carros velhos de cada um desses caras, e colou as metades na parede do museu do ABBA. Depois dessa, há a exposição sobre a Ascensão do ABBA à Fama, que explica que Ulvaeus e Andersson, junto com suas respectivas esposas Agnetha Fältskog e Anni-Frid Lyngstad (ambas já famosas por méritos próprios) ficavam compondo umas músicas para as quais ninguém dava a mínima, até que o single deles chamado "Waterloo" venceu o concurso de canções Eurovision de 1974, e eles estouraram. Depois há uma sala dedicada à época dourada do ABBA, que inclui a mesa de som na qual eles fizeram a maior parte de seus discos. Há exposições dedicadas ao tino para os negócios que tinha o empresário da banda, às roupas de palco, às miríades de discos de ouro e platina obtidos, aos microfones, aos equipamentos do estúdio, e ao ritual pré-show da banda.

Åke E:son Lindman
O banner promocional das estátuas dos membros do ABBA, no site do ABBA: O Museu
O banner promocional das estátuas dos membros do ABBA, no site do ABBA: O Museu

Não é necessário dizer que o lugar contém mais estátuas do ABBA do que é possível contar de cabeça (NA ÉPOCA ELES ERAM INCRÍVEIS. HOJE ESTÃO COM UMA CARA INCRÍVEL —VEJA AS ESTÁTUAS EM TAMANHO REAL DO ABBA NO MUSEU!", sugere o banner que há no site do museu). Além disso tudo, há um monte de exposições interativas, todas elas no mínimo moderadamente desorientadoras. Há uma mesa de som falsa em que você pode tentar e não conseguir mixar uma música do ABBA, um monte de cabines de karaokê com músicas do ABBA, e uma máquina incrivelmente aterrorizante que escaneia seu rosto e o coloca no corpo de um integrante do ABBA —o que eles chamam de seu "ABBAtar". Por mais improvável que seja, há também um display interativo que fornece informações sobre o Watain. Mas esse display é difícil de encontrar, e as informações são em sueco, porque o display fica no Hall da Fama da Música Sueca, uma área de tão baixa prioridade que o pessoal que administra o lugar só se deu ao trabalho de traduzir uma pequena parte dos textos para o inglês. O museu do ABBA, por outro lado, conta com traduções inglesas em praticamente tudo.

Graças ao museu do ABBA, eu agora conheço uma quantidade bizarra de fatos aleatórios sobre a banda. Sei que o nome original do ABBA era Björn & Benny, Agnetha & Anni-Frid, e que nos primeiros anos eles não conseguiam entender por que ninguém gostava deles, até que um dia se deram conta de que o nome era uma merda. Sei que o empresário do ABBA, Stig Anderson, era um homem extremamente severo, mas muitas vezes afetuoso, porque o museu do ABBA fez questão de me informar disso. Sei que Björn e Benny compuseram os maiores sucessos do ABBA numa mesa de cozinha, porque o museu do ABBA contém uma reprodução da cozinha em que eles criaram músicas como "Waterloo", "Mamma Mia" e "Dancing Queen". Sei que o ABBA foi pioneiro no recém-nascido ramo da produção de clipes, e que a assinatura visual deles era incluir diferentes combinações dos rostos de cada integrante na tela, porque o museu do ABBA exibe em loop um documentário sobre os clipes da banda. Sei que o helicóptero que aparece na capa de Arrival (o disco de "Dancing Queen") é muito pequeno, porque alguém o enfiou numa sala do museu do ABBA.

Åke E:son Lindman
Cortesia de ABBA: O Museu
Cortesia de ABBA: O Museu

Mais do que qualquer outra coisa, porém, o museu do ABBA é um monumento às dimensões completamente insanas do sucesso que o ABBA fez. Desde que arranjaram um nome que não era imperdoavelmente pavoroso, eles não só venderam quantidades absurdas de discos e ganharam quantias absurdas de dinheiro, como também deram legitimidade à Suécia como uma fonte de música, o que significa que todo mundo desde o Ace of Base, passando pelo Icona Pop e chegando até o Watain, deve a eles no mínimo um pouco de gratidão (ou, no caso do Watain, talvez um sacrifício de sangue).

Até hoje, o ABBA é para a música pop sueca o que os Beatles foram para o rock, ou James Brown foi para o funk —um grupo que criou um novo e revolucionário conjunto de valores musicais. Se os Beatles inventaram a música moderna e James Brown foi o pioneiro de uma pose, de uma atitude e de uma ousadia que seriam imitadas pelas gerações seguintes, o ABBA foi basicamente o pouso na lua da IKEAização [N. do T.: referência à IKEA, multinacional sueca especializada na venda de móveis domésticos de baixo custo] do pop. A música deles era um tanto vazia, não corria riscos, e não significava nada a um primeiro olhar, mas suas melodias eram tão à prova de balas, as canções tão estruturalmente puras, como um diamante ou uma bela mesa Malm, que fica impossível negar a genialidade deles.

E há também o nível insano de detalhismo que o pessoal do ABBA aplicava em tudo o que fazia. "S.O.S foi composta em tom ré menor, o que é algo muito, muito difícil de se conseguir, dado que, nas palavras de Nigel Tufnel, do Spinal Tap, é um tom que "faz as pessoas começarem a chorar imediatamente". Igualmente impressionante é o fato de que "Move On é escrita em tempo de valsa —algo bem distante dos ritmos four-on-the-floor usados por muitos contemporâneos da banda. Ou que em "Money Money Money o grupo alcança uma nova nota a cada vez que canta a palavra "Money". Com certeza, o ABBA não tinha necessariamente que fazer nenhuma dessas coisas, mas o museu deles argumenta que, sendo o ABBA, o pessoal cujo trabalho - não, responsabilidade cívica - era criar sucessos da música pop de alcance global monoliticamente gigantescos, a coisa não valeria a pena se eles não incluíssem aqueles pequenos floreios no pacote.

Foto do autor
O ABBAtar do autor
O ABBAtar do autor

É essa tendência a encarar uma grande obra de arte da mesma maneira que talvez se encare um produto comercial perfeito, com as idiossincrasias e personalidades de seus criadores incrustadas no artesanato de uma obra, e não focando em sua mensagem direta, que torna muitas obras de arte nórdicas supremamente interessantes. Por exemplo, se você nunca ouviu falar sobre o escritor norueguês Karl Ove Knausgård, e alguém chegasse dizendo: "Bem, o cara só pega e escreve um livro sobre si mesmo, ele fazendo coisas normais, e as ferramentas literárias que usa são meio clichê, e os diálogos são às vezes bem artificiais, mas ele é considerado um dos maiores escritores vivos do mundo!" você provavelmente ficaria confuso. Mas, se você sentar para ler um dos livros dele, acaba entendendo qual é o lance da escrita de Knausgård, que é completamente diferente do objetivo por ele declarado de "escrever algo que seja significativo". (Para os que acompanham, Knausgård hoje em dia odeia a Suécia mas continua morando lá, coisa que —vai entender. De qualquer forma, Karl Ove, se você estiver lendo esse texto, repare em mim, senpai!!) E é basicamente isso o que rola com o ABBA —uma música como "Waterloo" ou "Dancing Queen" não vai atingir níveis Bob Dylanescos de profundidade na letra, mas basta ouvir uma vez para que aquilo não saia da sua cabeça nunca mais. Isso não é nada fácil.

Já que o museu do ABBA foi criado com base principalmente em contribuições da própria banda, ele contém uma boa quantidade de omissões bastante escandalosas. O museu só menciona de passagem os divórcios entre Agnetha/Björn e Anni-Frid/Benny, que resultaram na separação da banda, e as placas insistem estranhamente em afirmar que a banda está em hiato, apesar de o grupo já haver declarado repetidas vezes que jamais gravará novas músicas e nunca mais se apresentará ao vivo. Embora a banda tenha contado com uma boa quantidade de detratores (o lendário crítico de rock Robert Christgau certa vez se referiu a eles como "o inimigo"), o museu joga os haters para escanteio, grudando no canto de uma sala um pôster contendo dois mini-ensaios de estilo ambíguo que na prática descartam as cenas progressiva e de esquerda da Suécia. Em ABBA: O Museu, é preciso buscar ativamente por evidências de que a Suécia já teve alguma outra música além do ABBA, e então você é informado de que essa música era, basicamente, um lixo.

Åke E:son Lindman
O museu do ABBA é uma compilação de fatos aleatórios e bizarros
Cortesia do ABBA: O Museu

E também tem todo o lance de o museu do ABBA só aceitar cartões de crédito e débito, o que é uma coisa bem normal, quando você leva em conta que impressionantes 80% de todas as transações feitas na Suécia são conduzidas via cartão, e que a nação já está bem encaminhada no objetivo de abolir o dinheiro vivo. Mas aí a coisa se complica quando você se lembra de que o porta-voz de fato da ideia de abolir o dinheiro vivo na Suécia é ninguém mais, ninguém menos, do que Björn Ulveas, do ABBA, que, numa declaração publicada no site de ABBA: O Museu, insistiu que a abolição do dinheiro vivo acabaria por causar uma diminuição nos crimes relacionados às drogas (coisa que: risos). Mesmo quando se passa por cima do quanto isso é uma coisa totalmente não-rock-n-roll, há um quê muito sinistro em como ABBA: O Museu ignora tudo no mundo que não seja 100% cor-de-rosa.

Assim como eles serem todos sorriso o tempo inteiro fazia o ABBA ter um efeito muito mais sinistro do que o conseguido por qualquer shock rocker da história —é sério, veja o clipe de "Waterloo" e tente não ir se esconder debaixo da cama—, a marcha forçada da alegria do museu, que apresenta o ABBA como a única banda sueca do universo até o momento em que eles resolveram se aposentar e permitir que as outras bandas suecas acontecessem, parece algo quase totalitário. Não digo isso para criticar a banda ou o museu dedicado a ela, de modo algum, contudo —trata-se de uma imagem perfeita do ABBA enquanto banda, ainda que seja um reflexo horrível da realidade. Mas, falando sério, quem quer viver na realidade? A realidade é triste e inconveniente. É um lugar em que temos que enfrentar o caos, o conflito, e, por fim, a morte. A coisa que torna o ABBA algo ao mesmo tempo mágico e aterrorizante é que eles descobriram como existir inteiramente separados de tais trivialidades deprimentes, encontrando a imortalidade na ordem e na alegria.

Drew Millard é um dancing meme. Siga-o no Twitter.

Tradução: Marcio Stockler

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