Folha de S. Paulo


tréplica

Ideologia dominante no Brasil infelizmente não é a que eu quero

Resposta ao deputado Rogério Marinho (PSDB-RN).

Por parágrafo:

1) O deputado Marinho me explica que o PSDB não é um partido laico. Triste conclusão: os únicos partidos laicos e progressistas, no Brasil, seriam marxistas.

2) A modernidade ocidental, na qual vivemos, é uma sociedade aberta, com grande mobilidade social, sem castas e sem um corpo fixo de tradições que determinariam o lugar de cada um no corpo social, suas tarefas, suas relações com os outros etc.

Nas sociedades abertas (que não dispõem desse corpo de tradições), a cultura é constituída pelo conjunto contraditório e conflituoso de crenças, valores e visões de mundo dos cidadãos. Ou seja, nessas sociedades (por exemplo, na nossa), a cultura que prevalece se confunde com a ideologia dominante.

Eu talvez tenha perdido a mão, mas meus estudantes de "Anthropology 101" (o basicão de primeiro ano) entendiam isso na primeira aula.

3) O deputado me parece discutir com um inimigo imaginário. Certo, há marxismos diferentes –por exemplo, nos anos 1960, eu era mais próximo de Henri Lefebvre que de Louis Althusser. Também havia países socialistas e comunistas diferentes (a Iugoslávia da autogestão era mais tolerável do que a Bulgária), mas nenhum era aceitável.

Variações análogas existem em qualquer ideologia dominante; o cristianismo não é o mesmo em Genebra, em Roma ou na Bahia –tem monsenhor Lefevre que reza em latim e tem a Teologia da Libertação. Qual é o tópico?

4) Gosto de Cuba por seus charutos, pela música e por Phedra de Córdoba, uma amiga dançarina-atriz transexual que teve que fugir de Cuba e brilhou nos palcos de São Paulo até sua morte, um mês atrás. O regime cubano prendeu e matou os homossexuais da ilha.

Qual é a relação da perseguição dos homossexuais em Cuba com "a ideologia de gênero", que seria "parte integrante da estratégia de esquerda etc.". O que é a "ideologia de gênero"?

Conheço os transtornos de identidade de gênero, que são dolorosos. Imagine você se olhar no espelho e não reconhecer aquele corpo como o seu. Hoje, tentamos reconhecer os casos em que uma mudança de gênero (cirúrgica e hormonal) pode ajudar o indivíduo a se reconciliar com seu corpo.

Outra possibilidade é que o deputado chame "ideologia de gênero" a própria obviedade do fato de que a identidade de gênero não é um efeito automático do sexo anatômico, mas é fruto de uma construção cultural.

Mais uma nota, para não piorar o mal-entendido: os transtornos de identidade de gênero não têm nada a ver com questões de orientação sexual ou de fantasias sexuais.

5) Não acredito que a crítica das ideologias dominantes, hoje, possa ser marxista, no sentido de apontar uma classe social cujos interesses estariam atrás da ideologia. Vejo as ideologias dominantes como sistemas autônomos e capilares de controle de nossas vidas. Elas não precisam servir o interesse de ninguém e funcionam como a Skynet de "O Exterminador do Futuro".

Agora, ideologia não é só a crença do outro. O que a gente pensa também é ideologia.

6) Concordo, o cristianismo é uma parte importante da ideologia dominante no Brasil de hoje. Mas não diria que "o" brasileiro "é" cristão, por fatalidade histórica.

Os jesuítas foram importantes nos primeiros anos de colonização no Brasil. Mas dois terços da população branca daquela época eram judeus convertidos à força. Os índios eram, digamos, animistas. Entre os negros, dominavam as religiões afro, sem contar o islã. No século 19, os colonos europeus, em sua maioria, eram cristãos, mas chegaram também os anarquistas, a religião espírita e o positivismo ateu da primeira República.

Além disso, a ideologia religiosa muda: no fim dos anos 1960, diziam que os italianos eram tão católicos que o divórcio nunca seria aprovado...

7) Acho ótima a libertinagem, mas confundir a tradição libertina com a libertinagem é como confundir luxo com luxúria. A tradição libertina (começa no século 16, com Maquiavel, Montaigne etc.) é uma tradição de pensamento livre, sem obediência à metafísica e à moral religiosa. A liberdade dos costumes foi apenas uma consequência.

8) A liberdade sexual de todos entre quatro paredes não precisa da tolerância do deputado, ela é protegida pela lei. E fora das quatro paredes? Eu saio de mãos dadas com minha mulher, transmito para ela minha pensão, meu plano de saúde etc. Quero que todos, os homossexuais por exemplo, também possam sair de mãos dadas, casar-se caso assim desejem, adotar crianças, transmitir pensões etc.

9) Como o deputado, também luto "contra a imposição covarde de valores ideológicos esdrúxulos feitas nas escolas etc.". Só que os valores que são impostos nas escolas, nos livros didáticos etc. são quase sempre os valores hegemônicos, ou seja, aqueles que o deputado Marinho defende.


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