Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Grande virada atual tem muitas definições, todas revolucionárias

A grande virada

Há quem diga que uma grande revolução do nosso tempo é a da filantropia global.

Peter Sloterdijk fez uma provocação nesta direção quando disse que, ao contrário do que imaginávamos no século 20, não são os mais pobres, mas os ricos é que transformarão o mundo no século 21. Sloterdijk tem em mente exemplos como o movimento Giving Pledge, bem-sucedida campanha lançada por Bill Gates e Warren Buffett pedindo que bilionários de todo o planeta se disponham a doar, no mínimo, metade de sua fortuna para causas humanitárias.

Há quem encontre a grande virada contemporânea no primeiro artigo definido pela ONU em suas Metas para o Desenvolvimento Sustentável, lançadas no ano passado. Está escrito: até 2030, erradicar a extrema pobreza para todos e em todos os lugares. Vai aí certo otimismo, sem dúvida embalado pelos avanços das últimas três décadas: quando a miséria do planeta diminuiu de 50% para algo próximo a 15%.

É possível que a grande mudança tenha sido a globalização econômica, a "ascensão do resto", como definiu Fareed Zakaria. A prática do offshoring, a transferência de tecnologia de regiões mais ricas a regiões mais pobres, o treinamento massivo de pessoas, o aumento da escolaridade e do acesso à informação.

Há quem defina a grande transformação do nosso tempo como a afirmação da sociedade de direitos. A ideia estava contida no argumento lançado no fim dos anos 1980 pelo cientista político norte-americano Francis Fukuyama, sob o conceito do "fim da história".

Fronteiras do Pensamento

A ideia simples de que a economia de mercado e a democracia política seriam, doravante, as formas preferenciais de organização social. A afirmação de direitos em suas duas dimensões: expressão política e intelectual e iniciativa econômica. Muita gente, à época, não compreendeu a tese de Fukuyama. Mas sua ideia-força prossegue intacta.

Em 2015, a Suprema Corte americana legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo; há poucos dias, Obama visitou Cuba, e a palavra mais ouvida de ambos os lados foi "abertura". Algo que diz respeito ao direito de ir e vir, de criticar o governo ou de abrir um comércio. É possível que uma das importantes mudanças do nosso tempo seja a afirmação da ideia de que a liberdade humana não pode ser fatiada.

Há quem sugira que a grande alteração de nossa época é a afirmação da "sociedade dos indivíduos". Ela se expressa, à perfeição, no conceito desenvolvido pelo urbanista dinamarquês Jan Gehl de "cidades para as pessoas". A crítica do projeto modernista –cujo símbolo, ao menos por estes trópicos, é Brasília. Das nossas cidades que, em nome da forma e da funcionalidade, deixaram escapar o que Gehl chama de "perspectiva do nível da rua".

Talvez esteja contido aí certo romantismo: a crítica dos arranha-céus e das cidades feitas para automóveis, e o elogio dos espaços públicos e das ciclovias. Não importa. O foco é a promoção do encontro. Da saudável convivialidade perdida nas megacidades.

A sociedade do indivíduo se revela na ascensão das novas formas econômicas. Difícil não prestar atenção ao que se passa no universo da chamada "revolução maker", a ideia de que qualquer pessoa poderá ser um designer de produto.

Ampliando-se o conceito, cada indivíduo poderá ser um emissor de informação na blogosfera, o único proprietário de um veículo de comunicação. Ou alguém imerso na chamada "economia do compartilhamento", alugando um quarto no Airbnb ou comprando frutas e legumes no Farmigo.

Talvez ninguém saiba definir, com precisão, em que consiste a grande virada contemporânea. E é esta a pergunta que será feita aos convidados do Fronteiras do Pensamento nesta temporada 2016. Muitas serão as respostas e –imagino– haverá algumas confissões. Cada um tem suas próprias grandes viradas. E elas ensinam. Precisamos estar dispostos a aprender.

FERNANDO SCHÜLER é doutor em filosofia, professor do Insper e curador do Fronteiras do Pensamento


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