Folha de S. Paulo


Devastada pela lama, Mariana e suas ruínas inspiram filme e obras de arte

É a tragédia congelada, e ela é marrom, meio vermelha. Quando ficou sabendo do mar de lama que destruiu a cidade mineira de Mariana, o artista sul-africano Haroon Gunn-Salie foi ver de perto o desastre.

Ele passou mais de um mês no que sobrou do lugar soterrado em novembro do ano passado, quando uma barragem da mineradora Samarco se rompeu, despejando barro tóxico no rio Doce e arrasando tudo ao redor.

"Uma questão que todo mundo pensava era o som da lama", conta Gunn-Salie. "Ninguém conseguia descrever muito bem, mas pessoas se lembram do barulho líquido, pedaços de bambu se quebrando, o grito dos bichos."

Essas memórias e o choque da noite em que o mundo parece ter acabado para quem vivia por ali –19 pessoas morreram no desastre e centenas ficaram desabrigadas– ressurgem em instalações e vídeos do artista agora no Galpão Videobrasil, em São Paulo.

Mais ambicioso entre os nomes que vêm transformando a tragédia de Mariana em obras de arte, entre eles o fotógrafo Christian Cravo e o cineasta Tadeu Jungle, Gunn-Salie não quis só documentar a destruição. Ele reconstruiu parte dela em sua mostra, onde estão os escombros reais de uma casa da cidade e seis toneladas de lama trazidas do inferno que se tornou o lugar.

Sua obsessão pelos mínimos detalhes da forma que tomaram os destroços, suas cores e até a sensação tátil das paredes desmoronando parece levar a ideia de pornografia da ruína, ou "ruin porn", como dizem os americanos, a um nível mais dramático.

Nos últimos anos, desastres como o terremoto no Haiti, o tsunami no Japão e o furacão Katrina, que estraçalhou Nova Orleans, turbinaram uma onda de estetização da destruição, uma busca pela beleza estranha dos restos desses lugares antes cheios de vida.

"Deslocamos uma ruína, tiramos ela do seu lugar debaixo da lama e trouxemos para a exposição", diz Gunn-Salie. "Mas aqui fazemos mais do que a 'ruin porn'. Damos a chance de navegar pela ruína. É possível ver de perto como foi estar ali, dentro daquela água lamacenta."

Sua obra também levanta outra questão. Mudar a ruína de lugar, algo que envolveu mais de 30 trabalhadores que vieram até São Paulo reconstruir os escombros, parece espelhar a remoção forçada das famílias que perderam suas casas na tragédia, um ato brutal de desenraizamento.

Ele conta que primeiro tentou comprar as ruínas da casa agora na mostra, mas acabou ganhando os destroços de uma moradora que fazia questão que o mundo visse de perto o que aconteceu ali.

Não é a primeira vez que Gunn-Salie entra na vida de quem acaba inspirando suas obras. Na África do Sul, o artista já havia retratado os moradores da periferia da Cidade do Cabo, forçados a viver em guetos moldados por uma política de segregação racial que ele diz ainda sobreviver em seu país, mesmo décadas depois do apartheid.

"Trabalhei anos contando a história de umas 60 mil famílias deslocadas para longe da cidade, o que levou à criação de muitas obras", diz Gunn-Salie, que também mostra agora peças realizadas numa favela de Belo Horizonte na galeria paulistana Mendes Wood DM. "Todos os trabalhos surgem de um diálogo com as pessoas. Faço uma intervenção social profunda."

ÚLTIMO RESPIRO

Enquanto o sul-africano Haroon Gunn-Salie ficou impressionado com relatos do som da lama que avançou sobre Mariana, Christian Cravo não para de pensar na cor avermelhada do minério de ferro e no ocre do barro que cobriu toda a cidade mineira.

Filho do fotógrafo Mário Cravo Neto, o artista já havia documentado a destruição causada pelo terremoto que devastou o Haiti há seis anos.

Sua mais nova série, toda realizada em Mariana, agora marca um retorno a cenários de destruição. Num livro, que será lançado em maio no Instituto Tomie Ohtake, Cravo retrata os vestígios de vida no meio da lama –um sapato de mulher, um fogão, móveis mutilados pelos desabamentos.

Ninguém aparece nessas imagens cor de terra. Fica só o que as vítimas deixaram para trás, uma cidade fantasma. "Não é preciso mostrar a desgraça carnal para narrar o drama humano", diz Cravo. "Você pode mostrar todo o drama sem a confusão, o desespero, a tristeza da carne."

Mesmo no Haiti, onde morreram 200 mil pessoas, Cravo não retratou um só corpo.

Em Mariana, sua câmera mantém a distância de imagens mais violentas para mostrar objetos quase congelados no tempo, numa imobilidade acachapante –uma cortina, por exemplo, ganha um aspecto quase pétreo, como se fosse uma escultura de mármore esquecida ali.

"São objetos que pararam naquele instante em que a lama chegou", conta Cravo. "Eu me lembrei muito de Hiroshima e de Pompeia. São lugares congelados de um instante para o outro na forma como viveram. É o momento eterno que representa o fim daquela sociedade."

assista ao filme

Tadeu Jungle, que fez um filme no meio dos escombros de Mariana, também buscou mostrar o momento em que a vida da cidade parecia evaporar. Narrado pelas próprias vítimas e rodado em realidade virtual, permitindo uma visão de 360 graus de cada cenário retratado, "Rio de Lama", agora no YouTube, é um documento mais que preciso de todo o horror que ficou para trás.

"É um lugar absurdo. Tudo aquilo é marrom, mas você vê as roupas, os móveis", diz Jungle. "Tem uma energia esquisita, porque pessoas podem estar soterradas ali, e a estranheza do marrom misturado com uma vida passada, de um lugar que vai desaparecer. Se o filme não fosse feito naquela hora, não daria para fazer, porque o mato vai voltar, a natureza vai voltar."

HAROON GUNN-SALIE
QUANDO de ter. a sex., das 12h às 18h, sáb., das 11h às 17h; até 11/6
ONDE Galpão Videobrasil, av. Imperatriz Leopoldina, 1.150, tel. (11) 3645-0516
QUANTO grátis

CHRISTIAN CRAVO
QUANDO lançamento do livro e projeção das fotos em 11/5, às 19h30
ONDE Instituto Tomie Ohtake, r. Coropés, 88, tel. (11) 2245-1900
QUANTO grátis

RIO DE LAMA
DIREÇÃO Tadeu Jungle
ONDE no YouTube
QUANTO grátis


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