Folha de S. Paulo


Diretor polonês acerta as contas com a história de seu país em espetáculo

"Não há nações com a consciência limpa." Um dos principais diretores europeus hoje, Krzysztof Warlikowski apresenta na MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a partir desta sexta (11), uma peça em que acerta as contas não só com a história da Polônia, mas da Europa e de "lugares muito distantes".

Guerra, extermínio, o sacrifício da vida: é a conversa que propõe em "(A)polônia", que estreou em 2009. E que ele garante ser, apesar de tudo, leve, um show, para divertir.

Warlikowski vem de estrear em Paris "Phaedra(s)", com a atriz Isabelle Huppert. Em entrevista, fala dos dois e das características de seu trabalho, que começa pela palavra e a desconstrói.

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Folha - "(A)polônia" é representativa da sua obra teatral?

Krzysztof Warlikowski - "(A)polônia" foi para mim um divisor de águas. Foi criada na época em que estávamos construindo o Nowy Teatr [Teatro Novo], que só agora, daqui a algumas semanas, abrirá em Varsóvia a sua sede numa garagem, devidamente adaptada, da cidade do entreguerras. Naquele tempo estávamos convencidos de que tudo iria acontecer muito rápido, que iríamos poder estrear "(A)polônia" no prédio que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial.

Queria começar as atividades nesse lugar a partir de uma conversa séria com o público sobre aquilo que aconteceu na Polônia, em Varsóvia, durante a Segunda Guerra. Uma conversa que deveria ter acontecido logo depois do fim da guerra, mas não aconteceu porque depois da guerra se instalou na Polônia o comunismo, que falsificava a história. E depois de 1989 estávamos tão absorvidos pelo novo que não conseguimos acertar as contas com o nosso passado.

Queria também que essa conversa tivesse um caráter leve, para que as pessoas que quisessem participar dela não se sentissem obrigadas, por essa razão a peça é construída com base num show.

Em que ela expõe a sua visão da história da Polônia e da Europa?

Eu sentia que essa conversa não podia ser conduzida com o apoio de um único texto literário. Por isso comecei a procurar em diferentes fontes, nas tragédias gregas e nos textos contemporâneos, numa sensação de uma total liberdade de criação, de abertura do processo, na possibilidade de provocar um choque de textos que reciprocamente se abriam e se iluminavam. Nasceu uma imagem da história humana formada como uma interminável procissão de carrascos e vítimas.

O início foi dado pelo sacrifício de Ifigênia colocada no altar da pátria, e o fim, pela história de Apolonia Machczynska, mulher que morreu salvando os judeus, uma personagem histórica cuja trajetória foi descrita pela [escritora polonesa] Hanna Krall. Começou assim a conversa sobre o sentido e sobre a possibilidade disso que é impossível, ou seja, o sacrifício da vida.

Esse tema na Polônia católica é um dos que não se discutem e nem se contrariam.

O senhor já afirmou que usa a prosa de Kafka, Proust, Coetzee como guias para os seus espetáculos. O que eles profetizam –e o sr. apresenta em suas peças– como declínio dos deuses europeus?

Não estou criando uma nova teogonia nem mitologia. Estou acertando contas com uma experiência histórica que além de tudo não foi a minha experiência. Como se eu carregasse em mim um dibuk [espírito maligno e possuidor, no folclore judaico] do passado, da guerra, do extermínio.

Quando se mora em Varsóvia, é difícil se livrar disso. O gueto ocupava um terço da cidade. Quase todos os judeus foram deportados e mortos nas câmaras de gás. Tratamos escritores como profetas, mas não se deveria exagerar com isso.

Acredito que os escritores citados pelo senhor são barômetros dos tempos deles, uma membrana-repórter da realidade que na própria sensibilidade lhes permite enxergar mais que as pessoas comuns. Mas não esqueçamos que Kafka morria de rir enquanto lia os fragmentos de "O Processo" aos seus amigos, e eles também se divertiam muito. Gosto muito disso, a abertura de pensamento e de visão, a liberdade de intermediação e de esquemas.

Em que pontos a história da Polônia no século 20, sob domínio estrangeiro e testemunhando alguns dos atos mais desumanos, espelha o declínio europeu?

Não sei se se pode falar só da história da Polônia. A Europa foi um terreno de todos esses massacres. A Polônia também. Mas nós na Polônia aprendemos a enxergar a nós mesmos como as vítimas da história. As partilhas, a ausência do Estado polonês, a ocupação alemã e o comunismo criavam uma imagem unidimensional da Polônia oprimida, martirizada.

Só recentemente [o historiador polonês e professor de Yale] Jan Tomasz Gross —do qual, note bem, o governo atual quer tirar as condecorações estatais que ele recebeu, acusando-o de traição da Polônia— revelou um dos crimes cometidos pelos poloneses, contra a população judaica em Jedwabne, em 1941.

Não somos sem culpa e temos que nos confrontar com isso. Acho que não há nações com a consciência limpa, por isso "(A)polônia" encontra o seu contexto em lugares muitos distantes da Polônia.

O senhor teve como mestres alguns dos maiores nomes de gerações anteriores no teatro, como o polonês Krystian Lupa e o inglês Peter Brook. O que aprendeu com eles dois, em especial?

Que não existem regras e métodos, que o teatro não é uma repetição de convenções, mas uma busca individual, que não existem métodos de apresentar os textos. Que o teatro significa pôr perguntas, que podem ser mais importantes que as próprias respostas, porque quebram fortemente a nossa paz e nos obrigam a procurar.

Foram duas grandes escolas de individualidade, concentração e rejeição das soluções prontas.

O senhor dirigiu espetáculos baseados em peças do francês Bernard-Marie Koltès e da inglesa Sarah Kane, nomes de referência na dramaturgia contemporânea. Pode descrever o que o atraiu na obra de cada um deles? O que os diferencia, por exemplo, de Shakespeare, autor que também encenou diversas vezes?

Não sou um diretor de repertório, não "coleciono" autores e não procuro fogos de artifício na área da dramaturgia. Procuro mundos nos quais posso instalar o meu teatro.

Não fico pensando sobre o que une e o que diferencia os autores cujas peças estou dirigindo. Não os classifico entre contemporâneos ou clássicos, mas entre esses que sabem abrir o mundo e aqueles que começam com o fechamento do espaço através de uma descrição tipo "ao lado direito —o sofá".

De forma geral, os textos para o teatro são "aleijados", com uma carga de preocupação em relação ao palco, sobre o qual os autores na maioria não têm noção.

O senhor acaba de dirigir uma adaptação de "Phaedra's Love" e já havia feito "Cleansed". Passados quase 20 anos, como vê o legado de Kane?

Kane é uma autora genial. "Cleansed" foi um espetáculo que transportou o público e o teatro polonês a uma nova dimensão. Deixou clara a politização do corpo, da identidade sexual, e ao mesmo tempo continuou sendo muito poético, permitia as anistias provocadas pela beleza, na minha opinião necessária, quando se fala sobre os assuntos que o público não quer ouvir.

Apresento "Phaedra's Love" como parte de um espetáculo intitulado "Phaedra(s)". A sua versão do mito é a mais esmagadora e radical. A precisão dos diálogos e a visão da Fedra sem um "acalmante" figurino trágico a torna paradoxalmente ainda mais trágica. Esta Fedra está despojada de tudo, fria, contemporânea e insuportável. De uma madrasta incestuosa, torna-se uma mártir, vítima com intenções puras.

O senhor desconstrói textos, mas ao mesmo tempo tem em alta conta dramaturgos e romancistas. O que o atrai na palavra escrita? E o que o faz querer desconstruí-la?

Para mim o texto é sempre um ponto de partida para os trabalhos com o espetáculo. É um pensamento, e pensar é o mais importante no teatro.

Começo então com os textos, a partir de uma leitura aprofundada, que rejeita as convenções teatrais e esquemas interpretativos, que os textos ganham perdendo seu significado. Mas o tempo todo continuo sendo o autor da minha peça. Não ligo para a criação de interpretações novas e estridentes, mas para a formulação da ideia sobre o que me perturba e interessa.

Por isso junto diferentes textos. Não sei se os desconstruo. É o resultado de uma leitura profunda, e não a necessidade de desconstrução.

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RAIO-X Krzysztof Warlikowski

Nascimento

Nasceu em 1962 em Estetino (Szczecin), na Polônia, fronteira com a Alemanha

Formação

Estudou em Cracóvia e Paris, foi assistente de Krystian Lupa e Peter Brook

Espetáculos

Dirigiu "Sonho de uma Noite de Verão" e outras peças de William Shakespeare, além de "Angels in America", de Tony Kushner, e óperas como "Lulu", de Alban Berg

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LEIA TRECHO DE "(A)POLÔNIA"

"Agamenon - Em tempos de guerra, o cidadão masculino perde um de seus direitos mais básicos, seu direito à vida. Mas o cidadão em questão também perde outro direito, tão básico quanto: o direito de não matar. Ninguém lhe pede sua opinião. Vamos fazer as contas. Mortos no front leste: 21,5 milhões. Solução final: 5,1 milhões. Total: 26,6 milhões. 572.043 pessoas mortas por mês, 131.410 pessoas mortas por semana, 18.772 pessoas mortas por minuto. Um novo cadáver em média a cada 4,6 segundos. Cronômetro na mão, contando 1 morte, 2 mortes, 3 mortes etc., a cada 4,6 segundos, e tente imaginá-las na sua frente."

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(A)POLÔNIA
QUANDO sex. (11), às 19h; sáb. (12), às 19h, dom. (13), às 18h
ONDE Sesc Pinheiros - Teatro Paulo Autran, r. Paes Leme, 195, tel. (11) 3095-9400
QUANTO R$ 10 e R$ 20
CLASSIFICAÇÃO 14 anos


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