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análise

Oscar para 'Spotlight' homenageia jornalismo, mas não remedia crise

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O Oscar de melhor filme para "Spotlight" é de alguma forma uma homenagem ao bom jornalismo, que tem enfrentado a mais grave crise estrutural de sua história.

O fato de a ação se passar nos primeiros anos deste século, quando a internet já existia e os problemas que colocariam a atividade na encruzilhada atual já estavam postos mas ainda não se constatara a gravidade da situação, não deixa de ser relevante.

Um dos grandes méritos do longa é a reconstituição de época minuciosa que faz. Embora tenha sido há apenas 14 anos, a redação do "Boston Globe" daquele tempo parece pré-histórica. As maquinas de escrever já haviam sido substituídas por computadores, mas o grosso da pesquisa ainda se fazia em papel.

Apesar de serem vistas cenas que se tornaram clichê na vasta cinematografia sobre a imprensa existente (como as rotativas em ação e os caminhões com o logo do jornal em disparada para levar o produto aos leitores), "Spotlight" não é uma louvação nostálgica.

O que chama a atenção é o elogio contido, mas pungente, que ele presta à profissão ao retratar um grupo de pessoas fiéis aos códigos de conduta de sua prática centenária, com acertos e erros, mas com um sentido de propósito inquestionável.

O sucesso das reportagens do "Boston Globe" sobre os abusos sexuais praticados por sacerdotes católicos na cidade trouxe prêmios e reconhecimento ao jornal, mas não evitou que ele passasse por um declínio que foi similar ao de quase todos os seus concorrentes.

No ano de 2002, quando a série foi publicada, a circulação paga do "Globe" caiu 11%. E as 413 mil cópias que vendia há 14 anos se transformaram nas menos de 200 mil atuais. Ou seja: a qualidade jornalística do "Globe" não resultou em acréscimo de vendas.

Da mesma forma, é improvável que a tentativa que seus executivos agora fazem de capitalizar sobre o êxito do filme venha a alterar muito a situação ainda periclitante do jornal.

Este ano, os jornalistas do "Globe" se ofereceram como voluntários para entregar aos assinantes o seu exemplar durante alguns dias porque a empresa estava tendo dificuldades com os responsáveis pela sua distribuição.

Não é um problema do "Globe", que em 2013 foi resgatado da quase falência pelo milionário John Henry, dono, entre outros empreendimentos, do time de beisebol da cidade, o "Red Sox", como uma espécie de preito a outro ícone histórico de Boston.

Henry pagou US$ 70 milhões pelo diário, que em 1993, no auge de sua glória, havia sido adquirido pelo "New York Times" por US$ 1,1 bilhão.

Desde o tempo das reportagens retratadas pelo filme, duas em cada cinco vagas de jornalistas nas redações americanas foram fechadas.

É improvável que o Oscar de "Spotlight", apesar de talvez fazer muita gente pensar sobre o jornalismo contemporâneo, ajude a reverter o atual estado da indústria.

Poucos espectadores, quando as luzes se acenderem, se perguntarão: "Caramba, este tipo de jornalismo é vital para a sociedade: o que fazer para que ele não desapareça?".

Nem por isso a mensagem discreta de exaltação ao bom jornalismo do filme ficará perdida. Ela enfatiza a indispensabilidade de jornalismo independente para o fortalecimento da democracia e a necessidade de os responsáveis pelo negócio encontrarem as fórmulas para mantê-lo vivo, não importa em que plataforma (papel, vídeo, celular).

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA é editor da revista "Política Externa". Foi correspondente da Folha em Washington.


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