Folha de S. Paulo


crítica

Em livro, Cortázar faz confidências que podem assombrar os críticos

"O Jogo da Amarelinha" tem uma história física. Quando Julio Cortázar terminou de escrever o romance em si –levou vários anos entre idas e vindas, o capítulo do meio nasceu primeiro, e só depois o autor seguiu para frente e para trás–, ainda havia uma questão: o que fazer com a pilha de elementos acessórios que foi se avolumando durante o processo de criação? Eram citações, fragmentos de poemas, anúncios de revista, páginas policiais de jornal etc.

Cortázar então armou o livro, mais uma vez. No ateliê do seu amigo Eduardo Jonquières, pintor e poeta, pôs os capítulo separados no chão e começou a passear entre eles, "deixando-me levar por linhas de força": aqui encaixava bem o verso de Octavio Paz; ali enlaçava a nota sobre o suicida. O escritor ainda teve de modificar dois ou três capítulos, porque a ação começava a ir para trás em vez de avançar. Assim temos a maneira final como "Rayuela" foi editada, praticamente no olho.

A revelação está no livro "Julio Cortázar - Aulas de Literatura: Berkeley, 1980", e põe por terra inúmeras análises de quem perdeu tempo tentando descobrir qual a técnica do autor para misturar os capítulos e apresentá-los na ordem irregular –um dos charmes do famoso romance de 1963.

Andre Girard/Museo Nacional de Bellas Artes/Xinhua
O escritor Julio Cortázar relaxa em seu escritório, em 1981
O escritor Julio Cortázar relaxa em seu escritório, em 1981

Há mais confidências que também devem ter deixado a crítica de cabelo em pé. Ao falar sobre "A Casa Tomada", não menos famoso conto que abre a coletânea "Bestiário" –e que mereceu um sem-número de interpretações, sobretudo políticas–, o argentino conta que ele é resultado de um pesadelo que teve numa manhã de verão. O desenvolvimento do pesadelo segue exatamente o do relato. Ainda de pijama, Cortázar pulou da cama para a máquina de escrever e datilografou o conto.

"Embora possa parecer paradoxal, devo até dizer que tenho vergonha de assinar meus contos, porque tenho a impressão de que me foram ditados por alguém, de que não sou o verdadeiro autor. Não quero vir com histórias mirabolantes, mas às vezes tenho a impressão de que sou um pouco um médium que transmite e recebe outra coisa", desabafa.

Nesse tom de deliciosa improvisação seguem as aulas na Universidade da Califórnia. Cortázar não se limita a comentar a própria obra; arrisca alguma teoria sobre o conto e o romance, as diferenças entre fantástico e realismo, e a música do estilo. Além de abrir espaço para debater autores de sua admiração, como Edgar Allan Poe e Lezama Lima.

Paciente, não deixa pergunta sem resposta, principalmente aquelas sobre o que classificava como sua "etapa histórica", ou seja, seu compromisso político refletido na literatura, cujo maior exemplo é o romance "O Livro de Manuel".

Aulas de Literatura: Berkeley, 1980
Julio Cortázar
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A obra de Julio Cortázar encontra hoje detratores na Argentina. De maneira um tanto frívola e apressada, há quem o defina como "autor para adolescentes". Outros consideram que, passadas as comemorações pelo centenário de seu nascimento, em agosto de 2014, é chegada a hora de uma revisão de suas ideias, estruturas e processos criativos. Não pode haver, para tal, melhor estímulo que a leitura destas "Aulas de Literatura".

JULIO CORTÁZAR - AULAS DE LITERATURA: BERKELEY, 1980
AUTOR: Julio Cortázar
TRADUÇÃO: Fabiana Camargo
EDITORA: Record
QUANTO: R$ 45 (336 págs.)


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