Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Jô sempre foi fiel à ideia de que deve haver mais 'talk' que 'show'

Jay Leno encerrou sua carreira como apresentador de talk shows em fevereiro de 2014, pouco antes de completar 64 anos. David Letterman se aposentou em maio de 2015, aos 68, após 33 anos sentado atrás de uma mesa. Jô Soares vai deixar o seu posto no final de 2016, aos 78 anos, 28 dos quais comandando um programa de entrevistas.

Leno e Letterman, rivais cordiais, duelaram no fim de noite da televisão norte-americana por décadas. Jô, por sua vez, reinou absoluto, sem concorrentes, durante a maior parte de sua trajetória.

Acusar algum dos três de decadente significa desconhecer não apenas o talento de cada um, mas as limitações impostas pela indústria do entretenimento ao trabalho que fizeram. Mais que a idade ou o cansaço, é a permanente cobrança por renovação na TV que justifica o fim da participação destes três ícones.

Com tanta coisa para ver em tantos canais diferentes, quem ainda se senta diante da TV no final da noite para acompanhar uma entrevista?

Mas há algo mais –e pior, na minha opinião– por trás da saída de cena destes três grandes entrevistadores. O formato básico, sintetizado no termo "talk show", sempre girou em torno de entrevistas interessantes intermediadas por números musicais e piadas.

O gênero vem passando por uma transformação significativa nos últimos anos. Dito de forma bem resumida, os programas oferecem cada vez mais "show" e menos "talk".

À revista "Serafina", Marcelo Adnet deu uma boa explicação para esta mudança, ao menos no Brasil: "É uma sociedade que não debate. A gente não quer ouvir ninguém. Não quer saber o que ninguém tem a dizer. Quero zoar, não quero ouvir ninguém falar sério sobre nada. A gente quer fazer uma revolução sem ter que ler meio livro. Porque dá muito trabalho ler um livro, debater alguma coisa."

Adnet deve estrear no segundo semestre um programa semanal na Globo – "um talk show sem muito 'talk', mais 'show' do que 'talk'."

Assim como seus colegas americanos que saíram do ar, Jô Soares é um comediante de mão cheia, refinado e inteligente –não tem mais idade para jogar um ovo na cara de seus entrevistados, como Jimmy Fallon (substituto de Leno) eventualmente faz.

Criador de mais de 300 personagens, Jô abriu mão deles para justamente fazer o seu talk show no SBT a partir de 1988. Entendeu que aquela fase estava superada e apostou, corretamente, no programa de entrevistas.

O período em que o "Jô Soares Onze e Meia" virou um animado ponto de discussão sobre o impeachment de Collor é frequentemente citado como a melhor fase do entrevistador. Discordo.

Jô mostrou que a patente do entrevistado não é garantia de nada para uma boa conversa. Fez –e ainda faz– ótimas entrevistas com todo tipo de gente, famosos e "anônimos".

Como todo entrevistador, também falhou, interrompeu na hora errada, deixou de fazer perguntas ou não aproveitou oportunidades para aprofundar assuntos. Mas, nestes 28 anos, foi sempre fiel à ideia que um programa deste tipo deve ter mais "talk" do que "show".


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