Folha de S. Paulo


Mostra revela como artistas forjaram a iconografia do continente americano

É menos violenta a América. No lugar de mares revoltos, vulcões em erupção e tempestades arrasadoras, plantas tropicais parecem assar debaixo do sol, icebergs boiam sorumbáticos nos mares do Ártico e cachoeiras surgem numa placidez um tanto enganosa.

Esse contraste entre a representação dramática de panoramas naturais no romantismo europeu e o caráter estoico, quase monumental dos retratos das Américas –do extremo sul da Argentina às geleiras do Canadá– está na base de mais uma grande mostra que a Pinacoteca dedica às escolas paisagísticas, gênero clássico na história da arte.

"Paisagem nas Américas", que será aberta no dia 27 de fevereiro, pode parecer redundante aos olhos de quem viu no mesmo museu no ano passado uma ampla seleção de titãs do paisagismo britânico, de Turner a Constable.

Mas, fora o fato de o assunto ser o mesmo, as representações americanas reunidas ali agora estão atravessadas de outras tensões, reafirmando a distância de um oceano inteiro que as separa da Europa.

"Queria inverter o eixo da comparação da arte daqui com a dos europeus", diz Valéria Piccoli, uma das organizadoras da mostra. "É pensar se a gente tem uma história da arte em comum no continente e em como mostrar isso. A pintura de paisagem surgiu ao mesmo tempo nesses lugares."

Não faltava, aliás, o que retratar. Brasil, Estados Unidos e Canadá, três dos maiores países do mundo em extensão territorial, descortinaram horizontes vastíssimos para esses pintores. Do início do século 19 até os anos 1930, o arco temporal revisto pela mostra, eles forjaram uma iconografia do mundo novo.

Esse foi, aliás, um esforço bipolar, cindido entre a tentativa de estabelecer e sedimentar mitologias nacionais e a vontade taxonômica de classificar e catalogar uma natureza virgem e desconhecida.

Mais antiga obra da mostra, uma gravura de 1810 do francês Jean-Thomas Thibault deixa nítido esse lado mais esquemático –em primeiro plano, estão plantas e animais típicos dos planaltos do Equador, enquanto ao longe, dominando a composição, uma montanha com o pico coberto de neve transforma em formiguinhas os personagens perdidos perto da linha do horizonte.

Esse trabalho e grande parte das peças nas primeiras salas da mostra estão ancorados numa cartilha básica lançada pelo explorador alemão Alexander von Humboldt, que viajou pela América do Sul na virada do século 18 para o 19 e retratou em chave milimétrica as paisagens que observou.

Mas só depois de atravessar uma avalanche de obras nesse mesmo padrão é que a radicalidade dos trabalhos na última –e melhor– sala da mostra se revela com força total. Ali estão exercícios estonteantes de interpretação da paisagem pelas mãos de artistas como Tarsila do Amaral, o canadense Lawren Harris e a americana Georgia O'Keeffe.

"Mesmo que a paisagem esteja ligada a uma ideologia, há uma relação estética com a natureza que se acentua na passagem para a modernidade", diz Piccoli. "É a relação íntima do artista com o lugar."

TECNICOLOR AGRESTE

Tanto que O'Keeffe, um dos pilares da pintura americana, morta aos 98, há 30 anos, deixou Nova York e foi viver no deserto do Novo México para retratar de perto e de forma quase obsessiva seus contornos áridos, que explodem em tons vivos de vermelho e ocre.

Esse seu tecnicolor agreste tem uma estranha semelhança com as paisagens abaixo de zero de Lawren Harris, um dos maiores retratistas das montanhas e geleiras do Canadá.

Redescoberto no ano passado, quando foi alvo de uma retrospectiva em Los Angeles, esse artista surpreende pelo silêncio de suas composições. Quase surreais, suas paisagens têm a mesma angulosidade das telas de O'Keeffe, marcadas por uma geometria que reduz e estiliza a realidade sem resvalar na abstração.

Tarsila do Amaral, aqui vista em rara aparição ao lado de O'Keeffe, reafirma resquícios de outras vanguardas, aplicando a seu "O Mamoeiro", tela de 1925, as formas maquinais que aprendeu com o modernista francês Fernand Léger –nesse ponto, a brasileira e a americana criam duas leituras distintas da realidade decantada em cilindros, cones, cubos e esferas.

Quase um avesso de tudo isso, o vazio esbranquiçado de uma tela do venezuelano Armando Reverón pode ser visto aqui como um desfecho triunfal da exposição, quando a paisagem deixa de ser esmiuçada e calibrada para se revelar uma experiência sensorial.

"Ele vai pintando, pintando até se dar conta que já não interessa mais a paisagem", diz Piccoli. "O que interessa é a sua dissolução na luz."

PAISAGEM NAS AMÉRICAS
QUANDO abre em 27/2; de qua. a seg., das 10h às 17h30; até 29/5
ONDE Pinacoteca, pça. da Luz, 2, tel. (11) 3324-1000
QUANTO R$ 6


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