Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Na obra-prima de Harper Lee, olhar infantil contrasta com ódio

Harper Lee teve uma vida incompreensível para nós: como é possível publicar um best-seller aos 34 anos ("O Sol É Para Todos", 1960) e desaparecer durante mais de meio século do circo midiático?

Nós, que vivemos no circo, consideramos o gesto bizarro, para não dizer patológico. Se a "celebridade" é o supremo sonho de qualquer desesperado, Harper Lee violou esse código ao preferir o recato do Alabama natal. Pior: ela escolheu o recato –e por omissão virou "celebridade".

É possível que Harper Lee, partilhando da "incorruptibilidade" que marca os seus personagens centrais, tenha escolhido o silêncio da liberdade como forma de respeitar a obra primeira.

Toda a gente letrada conhece "O Sol É para Todos". A história, narrada por Jean Louise (ou Scout), é o testemunho dessa "incorruptibilidade da infância"; como se só as crianças pudessem conservar um sentido de decência e humanidade para identificar o mal. Em "O Sol É para Todos", as observações de Scout funcionam como contraste em relação ao ódio viscoso do racismo.

Quando lemos "O Sol É para Todos", é impossível não questionar o que será feito daquelas crianças –será que a maturidade destruirá o que era sagrado na infância? A resposta surgiu em 2015: para surpresa de todos, havia um novo romance de Harper Lee e a polêmica rebentou.

A controvérsia não se limitou à dúvida sobre a intenção da autora, física e mentalmente debilitada em um asilo, em publicar "Vá, Coloque Um Vigia". No livro, o herói de Scout –o pai Atticus– revela-se um apoiador do sistema segregacionista, para horror da filha que sempre o olhou como um herói.

Polêmicas à parte, digo apenas que o segundo livro completa o primeiro. O horror de Scout perante o racismo do pai pode marcar o fim das suas ilusões de infância; mas representa também a sua entrada na idade adulta –pelo confronto com a complexidade moral em que habitam os nossos semelhantes.

O pai Atticus defendera um negro de uma acusação injusta; mas isso não impedia que o mesmo Atticus, confrontado com o movimento pelos direitos civis, não sentisse dúvidas, medos e até repulsa pela igualdade total entre as "raças".

Da candura da infância às fraquezas e ambiguidades dos adultos, Harper Lee só precisou de dois livros para representar a matéria de que somos feitos.


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