Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Poeta Orides Fontela extrai a solidão que serve a tudo e todos

Paralelamente à "angústia da influência" –que, conforme propôs o crítico americano Harold Bloom, atinge todos os escritores–, deve existir uma "angústia do cânone", segundo a qual boa parte da crítica se arrisca a escolher os escritores que renovarão e os escritores que ficarão.

No Brasil, essa angústia incidiu, recentemente, sobre poetas bem diversificados: Roberto Piva, por exemplo, teria apresentado a poesia "de maior originalidade desde os concretos", nas palavras de Paulo Franchetti; Bruno Tolentino teria escrito, aos 23 anos, "um dos grandes livros da poesia brasileira desta segunda metade do século".

"Se tivesse vivido mais, sua poesia desembocaria no romance", vaticina Rodrigo Garcia Lopes sobre os escritos de Ana Cristina César (1952-1983), ícone da poesia da geração marginal.

Agora, Gustavo de Castro publica "O Enigma Orides" –de fato, uma longa reportagem sobre a poeta Orides de Lourdes Teixeira Fontela (1940-1998), sem qualquer pretensão de analisar criticamente a obra da poeta paulista.

Bel Pedrosa - 23.nov.1988/Folhapress
ORG XMIT: 521901_0.tif A escritora e poeta brasileira Orides Fontela posa para foto em sua casa, em São Paulo (SP). (São Paulo (SP), 23.11.1988. Foto: Bel Pedrosa/Folhapress. Negativo: 09273.1988)
A escritora e poeta brasileira Orides Fontela em fotografia realizada em São Paulo, em 1988

O livro recolhe com maior empenho reportagens e depoimentos sobre quem escreveu "Meio-dia! Meio-dia! / A vida é lúcida e impossível". Uma importante entrevista concedida à revista "Marie Claire" é integralmente transcrita, na qual uma bem-humorada Orides Fontela explica que, com relação ao zen-budismo, "procurava a iluminação mesmo. Mas só cheguei a um pisca-pisca".

Nunca livre da angústia religiosa, ela arremata: "Se um poeta pudesse vender conversa tão caro quanto um psicanalista, ficava rico. Agora, para me curar, eu vou em umbanda mesmo. É muito mais barato."

A palavra "enigma" repercute sobre uma vida de lastimável miséria material e intensos distúrbios psiquiátricos.

O autor do livro não oculta os fatos mais deprimentes entre tantos os que marcaram a vida da poeta de "Teia" (1996): nos acessos de fúria, atirava gatos pela janela do seu apartamento, que ficavam aleijados ou morriam; e Antonio Candido confidenciou a Davi Arrigucci Jr. que a considerava "uma mulher má, de difícil convivência".

Essas notas desabonadoras se somam a uma vida romanticamente nula e a experiências sexuais escassas e nunca prazerosas.

Em que consistiria, pois, o enigma –buscando encontrá-lo ao menos no que ela escreveu?

Alcides Villaça afirma que "a poesia de Orides Fontela compõe um sentimento de destino e uma lucidez serena". O crítico ainda é o intérprete mais sensível da sua poesia, e observa a notável liberdade com que se afasta das assim chamadas tendências históricas: pois, na poesia, Orides Fontela evita o drama pessoal e "a ordem do empírico".

Eis a grandeza e o impasse de sua obra –destituída da lírica amorosa, voltada para o minimalismo e para a intensidade da observação. Como ela mesma declarou, "a poesia reflete o temperamento, a personalidade do poeta, mas não a sua biografia." Nada mais distante, por exemplo, do projeto poético de um Roberto Piva.

Gustavo de Castro recolheu pouco mais de 20 poemas inéditos da poeta em "O Enigma de Orides", agora incorporados ao volume "Poesia Completa". Entre eles se encontra "Utopia", com sua extraordinária primeira parte: "Poema: casa / ao contrário // o exato in / verso / do abrigo."

Nenhum crítico observou que, na busca de fazer versos com o mínimo necessário, Orides Fontela escreveu poemas inteiros sem verbos, a exemplo também de "Espelho" e de "Reflexos": "A vida / quem? // A vida / em branco / espelho / puro: // ninguém / ninguém". Poesia impressionante na sua concentração, extraída de uma solidão que serve a tudo e a todos.

FELIPE FORTUNA, 52, é poeta, ensaísta e diplomata. Publicou recentemente "O Mundo à Solta" (Topbooks) e "Taturana" (Pinakotheke), ambos de poemas.

*

TRECHO

I

Da pura água

criar o vinho

do puro tempo extrair

o verbo.

II

Milagre (anti-

milagre)

era tornar em água

o vinho

vivo.

III

A água embriaga

mas para além do

_[humano: no amor_

simples.

IV

Para os anjos a

água. Para nós

o vinho encarnado

sempre

*

O ENIGMA ORIDES
AUTOR Gustavo de Castro
EDITORA Hedra
QUANTO R$ 59,90 (238 págs.)

POESIA COMPLETA
AUTORA Orides Fontela
EDITORA Hedra
QUANTO R$ 79,90 (428 págs.)


Endereço da página: