Folha de S. Paulo


Obras de Hélio Oiticica e de seu pai, José Oiticica Filho, estão em mostras

Hélio Oiticica era ainda um adolescente quando seu pai o levou para ver a primeira Bienal de São Paulo. Em 1951, "Unidade Tripartida", obra do artista suíço Max Bill, era a grande vedete da mostra.

Toda de aço, a escultura é um infinito abraçável, uma fita metálica que começa e termina nela mesma, formando um laço resplandecente. Uma âncora conceitual da abstração geométrica que ganharia força no Brasil, transparecendo tanto no trabalho de Hélio quanto no do pai, essa obra pode ser vista em retrospecto como uma ilustração da relação entre os dois.

José Oiticica Filho, o pai de Hélio, era um cientista que estudava insetos durante o dia e à noite se trancava num quarto escuro em casa para revelar fotografias de intestinos de mariposas. Dessas formas quase abstratas, surgiram experimentos visuais delirantes, fazendo de JOF, como ele ficou conhecido, um dos pioneiros da fotografia moderna do país, em especial por sua atenção às formas geométricas.

Duas exposições com imagens de JOF em galerias do Rio e de São Paulo e uma grande retrospectiva dedicada à obra de Hélio Oiticica, em cartaz no Espaço Cultural Airton Queiroz, em Fortaleza, agora tentam criar um diálogo entre esses artistas.

Mas essa não é uma conversa de igual para igual. Na história da arte brasileira, Hélio, morto aos 42, em 1980, se tornou um mito ao traduzir o construtivismo herdado das vanguardas europeias –de Malevitch, na Rússia, a Mondrian, na Holanda– para uma realidade tropical, abalando o rigor matemático das composições com uma dimensão carnal, a ginga do corpo.

Não existe narrativa da arte do país construída nas últimas décadas que não tenha sua figura como astro central. Desde sua redescoberta pelo circuito nos anos 1990, sua obra foi alvo de uma série de mostras, e o mercado respondeu à altura, transformando o que restou de suas criações em joias caras e disputadíssimas.

Seu pai não teve o mesmo destino. Há sete anos, quando um incêndio atingiu a casa da família no Jardim Botânico, no Rio, e destruiu uma parte dos acervos de pai e filho, quase nada se falou sobre a obra de JOF –muitos de seus 20 mil negativos foram destruídos, e as impressões que restaram agora passam por restauros.

Essas imagens ressuscitadas do esquecimento agora podem ser vistas numa mostra na galeria Índica, no Rio, e a partir de 18 de fevereiro na Raquel Arnaud, em São Paulo, num esforço de resgate de sua obra, ofuscada pela de Hélio.

"Talvez a sombra do próprio filho tenha sido muito grande", diz Ricardo Sardenberg, organizador da mostra paulistana sobre JOF. "Todo mundo conhece só o Hélio, mas a obra do pai é reveladora. Não dá para escapar dessa ligação entre pai e filho."

De fato, da mesma forma que o projeto plástico de Hélio parte da abstração geométrica mais rígida e vai até a ruptura com o plano da pintura para gerar estruturas e relevos coloridos que flutuam no espaço e podem ser penetrados pelo corpo do espectador, a obra de JOF cria um curto-circuito no que seria a abstração convencional.

Na superfície, ele parece obedecer a um cânone, mas o uso de figuras às vezes reconhecíveis e camadas e camadas de traços fotografados e refotografados implodem sua estrutura geométrica, instaurando uma espécie de ruído que rouba a cena. É o que Celso Favaretto, um dos organizadores da mostra de Hélio em Fortaleza, chama de "perturbação e oscilação" ou "ato de intervenção na forma, que se torna viva".

De todas as obras de Hélio, aliás, seus "Metaesquemas', pinturas em que retângulos coloridos parecem tremer e se desprender de uma grade mais rígida, são as que mais lembram as abstrações do pai.

Nesses trabalhos, Hélio questionava a ortodoxia visual que aprendeu nos anos 1950 com o Grupo Frente, artistas que experimentavam com a abstração geométrica. Ele conheceu o movimento pelas mãos do pai, que era amigo de Ivan Serpa, um de seus líderes.

Enquanto Hélio caminhava rumo à explosão da forma geométrica no espaço, JOF buscava diluir as fronteiras entre pintura e fotografia –processos paralelos que desmontavam a estoicidade do construtivismo.

INCONFORMISMO

Mesmo a ausência do pai também teve um impacto na obra do filho. Quando JOF morreu, em 1964, aos 57, Hélio entrou na fase mais radical de sua obra. É quando ele subiu o morro da Mangueira e criou os "Parangolés", as capas coloridas primeiro usadas pelos passistas da escola de samba.

Mais tarde, faria sua obra-prima, a instalação "Tropicália", uma interpretação construtivista da arquitetura das favelas, amalgamando a experiência popular e as vanguardas abstratas. "É um inconformismo estético junto a um inconformismo social", diz Favaretto. "É ao mesmo tempo sobre cultura e sobre o Brasil." Tal qual a obra do pai.

OITICICAS
Saiba onde ver as obras

FORTALEZA
Uma retrospectiva de Hélio Oiticica está em cartaz até 1º de maio no Espaço Cultural Airton Queiroz (av. Washington Soares, 1.321, Fortaleza, tel. 85-3477-3319; de ter. a sex., das 9h às 19h; sáb., 10h às 18h; dom., 12h às 18h; grátis)

RIO
Fotografias de José Oiticica Filho estão até 12 de março na galeria Índica (r. Visconde de Pirajá, 82, Rio, tel. 21-2523-6493; de ter. a sáb., das 10h às 19h; grátis)

SÃO PAULO
Mostra de José Oiticica Filho começa em 18 de fevereiro na Raquel Arnaud (r. Fidalga, 125, tel. 11-3083-6322; de seg. a sex., das 10h às 19h; sáb., das 12h às 16h; até 26/3; grátis)


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