Folha de S. Paulo


Confinados em convento abandonado, artistas criam obras nos escombros

Numa sala toda arrombada, cheia de buracos nas paredes, no piso e no teto, um garoto esguio de cabelo rastafári pinta à luz de velas. "É um ritual", diz o grafiteiro Enivo, carregando no tom místico de suas palavras. "Estar aqui é uma proposta de encontrar camadas dentro de mim, uma incessante busca do âmago."

Seu "aqui" é o que sobrou de um convento abandonado há mais de duas décadas em Cotia, nos arredores de São Paulo, hoje usado às vezes como academia de tiro. Entrar em contato com o tal âmago tem a ver com trabalhar nesse cenário ao mesmo tempo punk e transcendental. "Desculpa se eu naveguei muito." Navegou.

Em busca de uma espécie de nirvana estético embalado pelas ruínas, cerca de 30 artistas passaram dez dias confinados ali no fim de janeiro. Sem sair do convento, cada um achou um canto e transformou sua parte dos escombros criando novos trabalhos, entre pinturas, esculturas e instalações –um "Big Brother" da arte.

Mas, ao contrário do reality show, ali não há quarto do líder, nem piscina, academia de ginástica e espreguiçadeiras sob o sol. Os participantes dormiam em barracas num abrigo sem luz elétrica, usavam uma cozinha improvisada e se revezavam para tomar banho num único chuveiro.

No lugar da despensa cheia de comidas vistosas para o merchandising, muitos ovos e latas de energético –quente, já que não há geladeira. Esse é um estilo de vida em voga, aliás, entre artistas emergentes em cidades como Berlim e Detroit, onde fissurados em espaços abandonados viraram mendigos por opção.

"Foi uma ideia de imersão, de todo mundo ficar concentrado na produção aqui e conhecer as pessoas", diz o artista Walter Nomura, idealizador da ocupação. "É um funcionamento anárquico."

Tanto que não há ordens gritadas por um apresentador, nem dias de eliminação. Fica quem quer, vai embora quem enjoar do isolamento.

Em grande parte artistas de rua, habituados a pintar no meio do trânsito e sujeitos à fúria da cidade, os confinados do claustro acabaram se viciando na paz e no silêncio, além de incorporar aos trabalhos certo pendor esotérico.

Um deles criou um mural com anjinhos tocando exóticos instrumentos de sopro, como se executassem a trilha sonora de uma igreja arrasada.

Esse clima transparece no trabalho de Alex Orsetti, que que colou filtros coloridos nas janelas trincadas de uma sala, simulando um vitral meio mal ajambrado. "É um pouco inspirado nas catedrais", compara o artista. "Acho que estou indo para algo sacro. Essa sala é o subconsciente, onde a gente joga as informações que a nossa razão não capta. É algo espiritual, vem uma energia."

TRANSE

Ele não foi o único, aliás, a sentir essa força estranha. Nomura jura –falando sério– que já viu fantasmas no convento. Shima, artista que passou a trocar o dia pela noite, pintando madrugada adentro no porão das ruínas, também diz ter vivido em transe ali.

"Queria aproveitar o silêncio do espaço e as histórias de aqui ter sido um convento", diz Shima. "Estou pintando influenciado pelo contexto, mais sensível ao que está no ar."

Deslocando as obras de arte ou mesmo desenhos e pinturas medíocres para um espaço em escombros, todos esses artistas também parecem estar sensíveis a um movimento que vem se reafirmando na arte contemporânea –a ideia de sair do ambiente de butique das galerias e se misturar à cidade, ocupando espaços sujos e improváveis.

Um culto à ruína e a uma estética do desgaste também parece estar por trás de ocupações como essa no convento. São exposições-performance que podem tanto cair no ridículo quanto servir de estratégia para alçar ao circuito artistas que ainda não tiveram a sua chance ao estrelato.

Mercado à parte, o resultado é uma espécie de grande instalação coletiva, em que vontades díspares e trabalhos bem ou mal executados brigam por atenção. No fundo, o que resta é o impacto irregular de desejos passageiros, marcas e pegadas que ficam como mais uma camada de memórias num espaço esquecido.

"É deixar que a superfície do lugar traga a forma das obras", diz Bartolomeo Gelpi, que fez uma série de murais. "Tem os desafios do espaço."


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