Folha de S. Paulo


Imigrantes que presenciaram bomba atômica relatam memórias em peça

Seu Morita, 92, acompanhou agitado o relato de seu Bonkohara, 75, que lembrava como havia sido salvo aos cinco anos pelo pai, que o cobriu com o próprio corpo enquanto paredes e janelas vinham abaixo na explosão da bomba em Hiroshima, no Japão:

"Pai tudo sangrando atrás, mão, pé, tudo vidro cravado. Lavamos no rio. Irmã colegial tinha ido para o centro, mamãe também, por isso pai e eu fomos procurar. Aí andamos, andamos. Pessoas carbonizadas, bastante corpo boiando no rio, amontoado na margem."

No meio da história, Morita chorou. O diretor Rogério Nagai, brasileiro com avó natural de Hiroshima, procurou animá-lo. Falou que em seu próprio relato, pouco antes, Morita havia lembrado muitas coisas, bem mais que no ensaio, e fingiu cobrá-lo. Riram todos.

Lenise Pinheiro/Folhapress
Sao Paulo, SP, Brasil. Data 30-01-2016. Espetaculo Os Tres Sobreviventes de Hiroshima. Atores Takashi Morita (oculos/esq), Junko Matanabe (senhora/centro) e Kunihiko Bonkohara (dir). Centro Cultural Hiroshima do Brasil. Foto Lenise Pinheiro/Folhapress
Takashi Morita, Junko Matanabe e Kunihiko Bonkohara em 'Os Três Sobreviventes De Hiroshima'

"Os Três Sobreviventes de Hiroshima" é o espetáculo em que Nagai busca trazer, para espectadores de hoje, os testemunhos de Takashi Morita, Kunihiko Bonkohara e Junko Watanabe, 72, que estavam lá no momento da explosão e agora vivem em São Paulo.

Até pela idade, 21 anos no dia da primeira bomba nuclear lançada sobre a população civil na história, 6 de agosto de 1945, e pela proximidade com o ponto zero da explosão, 1.200 metros, são de Morita as memórias mais vívidas e pungentes. É o protagonista.

Integrante da Kempei, a polícia secreta do Japão imperial, ele permaneceu até as vésperas em Tóquio, durante os bombardeios incendiários americanos que queimaram quase toda a capital, matando mais de 100 mil civis.

"Uma semana antes eu estava na Tóquio", relatou Morita, rindo da ironia. "Cada [avião] americano passando, tudo queimado. Chego a Hiroshima, tudo normal. 'Graças a Deus, Hiroshima está bom.' Uma semana depois, caiu." Novamente, mais de 100 mil civis mortos.

A entrevista foi no Centro Cultural Hiroshima, na Liberdade, onde será apresentada a peça neste sábado (6). No Brasil desde 1956, Morita ainda fala português truncado.

"No dia 6 de agosto, 8h15, tempo muito bom. Quase guerra acabando. Eu e pessoas [outros policiais] vamos juntos, andando. De repente cai fogo mesmo, pá! Lançado a dez metros. Queimado aqui tudo [aponta as costas]."

"Levanta, 'o que aconteceu?' Ninguém sabia. Ninguém sabia de bomba atômica. Depois tudo quebrado, casa. Uma velhinha, 'soldado, dentro tem criança, vai lá tirar'. Tirei criança, mamãe também, já começando cair. Isso aconteceu lá, 70 anos [atrás], não esquece."

Do grupo de 18 policiais, 14 morreram, conta Nagai, que passou quatro meses almoçando na mercearia de Morita, na Saúde, para roteirizar o "biodrama".

Como Bonkohara, a senhora Watanabe era criança em Hiroshima. Mas não se lembra de nada. Só foi descobrir que estava a 18 quilômetros do epicentro aos 38 anos. Já morava no Brasil, voltou para uma visita e seu pai contou. Mas não é menos crítica:

"Naquele tempo, os homens adultos foram para a guerra. Então sobraram mulheres, crianças, idosos, por isso sou muito [crítica dos] americanos. Não era matar soldado, era povo. Eu e muita gente não temos nada com guerra."

Morita apartou, "guerra culpada". Mas ele se recorda da própria revolta ao voltar ao centro, "sozinho, machucado também, mais ou menos 10h30, no mesmo dia" e ver um bonde cheio queimado, entre outras cenas.

"Antes de morrer, uma pessoa falou, 'soldado, vai lançar [bomba na] América'. 'Pode deixar, eu matar tudo', eu falei. Olhei muitos mortos, fiquei com muito pensamento de vingança. Qualquer pessoa [ficaria]. Mesmo hoje."

Na conversa com os três e o diretor, não faltam também menções à Coreia do Norte, que vem de explodir uma bomba de hidrogênio, à base militar americana ainda presente no Japão, ao acidente de Fukushima, ao rearmamento do país. Ameaças de hoje.

OS TRÊS SOBREVIVENTES DE HIROSHIMA
ONDE Centro Cultural Hiroshima, r. Tamandaré, 800, tel. (11) 3207-5476
QUANDO sáb. (6 e 13/2), às 18h
QUANTO grátis
CLASSIFICAÇÃO 14 anos


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