Folha de S. Paulo


Em espetáculo, protagonista esquece namoro de dez anos depois de acidente

Peter Quilter acordou certo dia de um sobressalto. "Sonhei que estava sobre uma cama e ao meu lado havia uma pilha de jornais. Cada um representava um dia que eu tinha perdido", conta o dramaturgo inglês. "Não sabia onde estava ou se tinha dormido esse tempo todo. E tinha que ler todos os jornais para recuperar o que me havia escapado."

Assim nasceu a peça "4.000 Dias ou Abra Seus Olhos", texto de Quilter que ganha suas duas primeiras montagens quase simultaneamente: uma versão londrina, dirigida por Matt Aston, estreou no dia 14, e um espetáculo brasileiro, encenado por Annamaria Dias, abre temporada nesta sexta-feira (29) em São Paulo.

Depois do sonho, o dramaturgo passou a pesquisar sobre casos de perda de memória em pacientes com coma.

Chegou à trama de Michael (interpretado por Kiko Pissolato na montagem brasileira), artista plástico que sofre um acidente vascular e, ao acordar, não se lembra de nada do que aconteceu nos últimos 4.000 dias –cerca de 11 anos.

Tampouco se recorda do companheiro, Paul (Sergio Lelys), com quem está há dez anos. Isto abre uma brecha para que a mãe de Michael, Carol (Cláudia Mello), descontente com o relacionamento, tente se livrar de Paul.

"Ela acha que o parceiro faz mal ao filho e fez dele uma pessoa chata, que desistiu de sua criatividade", diz o autor em entrevista, por telefone, das Ilhas Canárias, onde vive há 15 anos com o namorado.

Não se trata necessariamente de homofobia. "Achei interessante ter um casal gay, mas deixo essa interpretação para a plateia: a de qual seria a motivação de Carol."

Mas o tema duro tem pitadas de humor. "É uma característica bem britânica: acho que a plateia tem que rir, mesmo quando o assunto é dramático. Se as pessoas querem ver algo realmente sério, podem ir à ópera", brinca.

'TARDE DEMAIS'

É inusitado, porém, que haja duas primeiras montagens da peça estreando quase ao mesmo tempo. Normalmente, explica o autor, as produções inglesas esperam cerca de um ano para venderem os direitos da obra. "Eles querem ter controle sobre tudo."

A equipe brasileira, no entanto, procurou Quilter uma semana antes dos encenadores britânicos. "Quando a produção inglesa comprou os direitos, pediu que eu não os passasse a mais ninguém. Disse: 'Tarde demais'", conta ele, que, durante os ensaios em Londres, reescrevia alguns trechos e os enviava ao Brasil.

"Acredito que dei um pouco de trabalho. Tiveram que traduzir de novo", ri ele.

Mas não é a primeira vez que Quilter tem um trabalho adaptado no Brasil. É dele o texto de "Gloriosa", montado aqui em 2009, no qual Marília Pêra (1943-2015) dava corpo a uma mulher excêntrica, dona de um canto horrendo.

E também há o musical biográfico "Judy Garland - O Fim do Arco-Íris", maior sucesso do dramaturgo, que ganhou versão da dupla Charles Möeller e Claudio Botelho há pouco mais de quatro anos.

À época, Quilter veio ao Brasil para a estreia e se assustou ao ver tanques do Exército entrando em favelas cariocas, como o Complexo do Alemão. "Achei que nem haveria sessão naquele dia, mas o teatro estava lotado. É interessante como são os brasileiros. Só queriam ver o espetáculo."

4.000 DIAS OU ABRA SEUS OLHOS
QUANDO sex., às 21h30, sáb., às 21h, dom., às 20h; até 27/3
ONDE Teatro Alfa - sala B, r. Bento Branco de Andrade Filho, 722, tel. (11) 5693-4000
QUANTO R$ 70 a R$ 80
CLASSIFICAÇÃO 12 anos


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