Folha de S. Paulo


ANÁLISE

David Bowie foi o gênio mais eclético da música pop

David Robert Jones não era chamado de Camaleão à toa. O cantor, que morreu neste domingo (10) após uma luta de 18 meses contra um câncer, foi o criador mais eclético da história da música pop, um gênio que imprimiu sua marca e talento a uma variedade impressionante de estilos e gêneros musicais.

No fim dos anos 60, quando adotou o nome artístico David Bowie, depois de passagens sem sucesso por algumas bandas, ele era um trovador folk urbano à Dylan. Na sequência, revolucionou o glam rock, o punk, a eletrônica, a new wave, o new romantic e o pop dançante de FM.

Bowie entendeu, melhor que ninguém, a mutabilidade e constante evolução de sons e tendências, e sempre conseguiu pegar o bonde dos novos caminhos. Nunca se prendeu a nostalgias. Seu mundo era o hoje.

David Bowie - discografia

Nenhum artista pop criou discos tão geniais e diferentes. Quem seria capaz de, em 1975, gravar "Young Americans" (1975), tributo à era disco e aos sons negros e dançantes americanos, e dois anos depois estar em Berlim, completamente absorto na música eletrônica vanguardista alemã de grupos como Kraftwerk, Faust e Neu! e gravar a obra-prima "Low"? Ninguém.

Bowie foi corajoso ao abraçar tendências que muitos julgavam ultrapassadas. Em 1983, quando lançou "Let's Dance", muitos o condenaram. A música para dançar - a discoteca - havia quase sepultado a indústria do disco, quando sua rapidíssima decadência deixara prateleiras de lojas lotadas de discos e gravadoras desesperadas com encalhes imensos. Mas Bowie fez um disco em que convidada seu público a esquecer a realidade e se acabar numa pista. Foi outra obra-prima, e o disco mais vendido de sua carreira.

Talvez a inquietude de David Bowie venha da infância, de uma angustiante sensação de que tinha pouco tempo na Terra. A parte materna de sua família tinha uma temerosa incidência de esquizofrenia, e vários de seus parentes foram internados em manicômios e até lobotomizados. David cresceu com a certeza de que, um dia, iria juntar-se a eles.Talvez isso tenha moldado sua visão cínica do mundo. Ele sabia que tudo era passageiro e podia sumir a qualquer instante.

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Antes de se dedicar à música, Bowie estudou design e trabalhou como publicitário. Era fascinado pela maneira como a sociedade absorvia tendências e as transformava. Via a arte como uma maneira de tentar fazer algum sentido de seu tempo. Para Bowie, a arte não mudava o mundo, mas o contrário: sua música refletiria o que estava ocorrendo à sua volta, mesmo que isso o fizesse mudar constantemente. Já em 1971, ele cantava em "Changes": "Eu não sabia o que estava esperando / e meu tempo corria solto / um milhão de ruas sem saída / e sempre eu achava que estava no caminho certo / parecia que o gosto não era tão doce / então eu me virei para olhar para mim mesmo / mas nunca consegui perceber / como os outros vêem o farsante / eu sou rápido demais para fazer esse teste / Mudanças / Vire-se e contemple o estranho".

"Changes" é a música emblemática de David Bowie, um artista completo, que sempre contemplou o estranho e viveu em constante transformação. Um gênio de nosso tempo e de tempos passados e futuros. Vá em paz, Camaleão, e obrigado por tudo. Qualquer um que ame a música ama você por tabela.

ANDRÉ BARCINSKI é jornalista e autor do livro "Pavões Misteriosos" (Três Estrelas).


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