Folha de S. Paulo


Na América do Sul, ricos e pobres não se ajudam, afirmou Bowie à Folha

Relembre entrevista de David Bowie para a Folha em 2002, por ocasião do lançamento do álbum "Heathen".

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Aos 55 anos, músico inglês lança "Heathen"; primeiro trabalho inédito desde 99 chega às lojas no dia 11 e tem participação de Dave Grohl e Pete Townshend.

O tempo passa rápido ao lado de David Bowie. O músico britânico, 55, recebe a reportagem da Folha numa suíte do hotel Thompson, no SoHo, em Nova York, sem frescura nem pose. De camiseta cinza e calça de veludo marrom larga, está com o cabelo curto e loiríssimo, com luzes. Ri muito e fácil, uma risada grande e branca.
Os 35 minutos do encontro são parte dos esforços do lançamento de seu novo disco, "Heathen", o primeiro de músicas inéditas desde "Hours...", de 1999, que chega às lojas do mundo em 11 de junho. Leia a conversa abaixo:

"Heathen" é seu disco mais nova-iorquino, não?
Sim, tem muito da ansiedade de Nova York, e estou falando da ansiedade pré-11 de setembro. É a cidade do estresse. Fico pensando: "Que tipo de mundo é este, onde coloquei uma criança?" [Bowie tem uma filha de dois anos, Alexandria Zahra Jones, com a modelo Iman". Quando 11 de setembro aconteceu, mudou tudo. Deus, o que foi que fizemos? Estamos prestes a começar a 3ª Guerra Mundial? Como este século começou desapontador...

Parece as lutas do Mike Tyson, em que todo o mundo se prepara para um show e tudo acaba em alguns segundos...
É isso! Exatamente a imagem que eu queria encontrar. Permite que eu a tome de você e use daqui para a frente?

É toda sua...
Que soco na cara levamos! Foi horrível, horrível. E as expectativas eram tão altas nos anos 90, parecia que tudo poderia ser feito no novo século, um novo começo, faríamos tudo certo desta vez, e a primeira coisa que acontece, nos primeiros segundos, é essa tragédia. Um nocaute!

Este é o futuro que você imaginava em 1963, quando gravou a primeira música?
Algumas coisas me lembram do que eu imaginava para o futuro na época de "Diamond Dogs" (1974). Os prédios caindo, as gangues de rua tomando conta, as previsões ruins se cumpriram. Mas nada de bom aconteceu. Sou negativo, não?

Mas tão bem-humorado, não dá para entender...
Eu sei! É que quero ser agradável, no fundo sou muito tímido e envergonhado (risos). Mas tendo a escrever com um ponto de vista sempre negativo. Escrevo sobre medo, ansiedade, abandono, mais medo, mais ansiedade, mais abandono (risos).

Como você escreve?
O que eu costumo fazer é escrever pequenos pedaços de música e assim que sinto que há ali um pequeno coração batendo, umas pequenas pernas chutando, penso: "Isso promete ser bom". Então paro de mexer e começo a trabalhar em outra letra. Não termino as músicas, coloco tudo em uma mesa de letras recém-nascidas e as levo para o estúdio, onde algumas serão terminadas e outras abandonadas.

Como escrever com uma criança de dois anos em casa?
Não tem o menor problema, ela é maravilhosa, não me atrapalha em nada e ainda me inspira. Claro que às vezes preciso dizer: "Querida, vá brincar em outro lugar" (risos). A maioria das músicas que escrevi é para ela, por causa dela. É um álbum ansioso e de questionamento, mas talvez eu não tivesse desenvolvido essa ansiedade ou não tivesse me inspirado tanto se ela não estivesse por perto. "A Better Future" (um futuro melhor) é para ela.

Por que o álbum se chama "Heathen" (pagão)?
Um budista é um pagão, por exemplo. Gosto dessa palavra porque ela é provocadora, é malcompreendida. Gosto da idéia de que as pessoas vão ouvir o álbum e tentar entender porque ele se chama "Heathen" e tirar suas próprias conclusões.

Pete Townshend e Dave Grohl tocam no disco...
Já trabalhei com Pete e foi ótimo, então resolvemos continuar o que tínhamos parado de fazer. Temos uma conexão muito forte. Quanto ao Grohl, eu achava que era o músico ideal para a música. Simples assim. Odeio divas, e você não tem idéia de como há divas entre os músicos. Não tenho tempo para elas, sou muito velho (risos). Não dá para ficar rodeado de egos enormes.

O CD tem ainda Pixies.
Adoro os Pixies. É a melhor banda norte-americana dos anos 80. Eu conheço o Charles (Thompson) ou o Frank (Black), como você preferir, muito bem. Escolhi essa música porque ela é pouco conhecida. E queria gravar Pixies porque acho inacreditável como as pessoas não os conhecem aqui. Corta o coração.

Você conhece bandas da nova cena rock nova-iorquina, como os Yeah Yeah Yeahs?
Não conheço essa banda, mas o Dave Grohl me falou dela. Gosto de Grand Daddys, Sparklehorse, acho muito boas. E as coisas mais comuns, como White Stripes e Strokes. Reconheço o Velvet [Underground" no som dos Strokes. Mas sei de uma coisa que vai diverti-la: uma das primeiras músicas que o Stripes gravou foi "Moonage Daydream", do "Ziggy Stardust". Li na web e estou louco para ouvir!

Você gosta de ouvir os covers de suas músicas?
Bowie - Alguns, nem todos. Odeio a versão de "Heroes" do Oasis, não ficou nada bom. Mas gosto muito da do Jacob Dylan.

E você gostou de ver essa música associada aos policiais e bombeiros de Nova York depois de 11 de setembro?
Achei ótimo! Na minha idade, você não espera mais ouvir suas músicas no rádio (risos). Adoro ver essa nova geração de artistas gravando minhas músicas, me faz pensar que valeu a pena, que minha obra tem valor.

O que você lembra de suas viagens ao Brasil?
Os shows são sempre bons, mas shows são parecidos no mundo inteiro. Mas tenho um problema com a América do Sul: é difícil aceitar a atual distribuição de renda. Há os muito ricos e os muito pobres, e eles não encontram um jeito de se ajudar.

Texto publicado na Ilustrada no dia 27/05/2002


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