Folha de S. Paulo


Peça lembra irmã de Mozart, prodígio infantil e esquecida pela história

Ainda criança, Mozart embasbacava plateias europeias no século 18. "Um prodígio!", escreveu-se sobre seu talento ao piano na década de 1760.

Nada mal para Anna Maria Mozart, a "garotinha do papai". "Minha filhinha, apesar de ter só 12 anos, é uma das artistas mais talentosas da Europa", seu pai, Leopold, relatou numa carta de 1764.

Anna Maria, conhecida pelo apelido Nannerl e primeiro talento musical da família, não entrou para a história. Após morrer, aos 78, sua dimensão histórica foi resumida numa frase em sua lápide: "irmã de Wolfgang Mozart".

Charlotte Dobre/Divulgação
Sylvia Silo é Anna Maria Mozart, irmã do artista e tema da peça
A atriz Sylvia Silo interpreta Anna Maria Mozart, irmã do artista e tema da peça "The Other Mozart"

Nannerl não tinha a menor chance de conquistar um naco da glória fraterna: era, afinal, mulher. Como tal, deveria ter outras prioridades –como arranjar um bom marido.

É desta premissa que parte o monólogo "The Other Mozart", em cartaz no circuito off-Broadway (no Players Theatre de Nova York). Perdida numa saia que ocupa meio palco, a polonesa Sylvia Milo vive a artista frustrada por não obter a fama que lhe era de direito.

"Essa concretização da tese de Milo não é sutil, mas é impressionantemente bela", disse o "New York Times". Já o inglês "Guardian" elogiou o espetáculo por mostrar "com devastadora paixão a artista que ela poderia ter sido". E que jamais foi. Em cena, a mãe de Nannerl a consola: "Música sempre será seu ornamento".

Entre os sete filhos de Leopold e Anna, "o casal mais belo" da austríaca Salzburgo, só ela e o caçula Wolfgang sobreviveram à infância.

Músico na corte local, o pai ensinou os dois a tocarem instrumentos. Ambos se provaram excepcionais, mas havia algo fora de série em Wolfgang Amadeus. Leopold anotou uma proeza do caçula no caderno musical da filha, segundo a biografia "Mozart", de Maynard Solomon: "Estes minueto e trio foram aprendidos por ele em meia hora, às 21h30, um dia antes de seu aniversário de cinco anos".

"Os irmãos eram meio que 'domesticados' pelo pai, que desfilava pela Europa com a dupla de crianças como se fossem macaquinhos de circo", diz João Batista Natali, autor do volume sobre Mozart na Coleção Folha Mestres da Música Clássica.

"Tratava-se de explorar a precocidade musical de ambos para ganhar dinheiro e prestígio. Leopold não sabia qual dos dois daria mais certo. Deu Wolfgang."

A FAMÍLIA DE MOZART - Quem é quem no clã musical

Para Sylvia Milo, Nannerl "teve uma tremenda influência sobre Mozart, já que era cinco anos mais velha. Os dois tinham uma competição saudável, o que os fazia praticar ainda mais". Pena que ela tenha nascido com o talento certo na época errada, afirma.

"A história de Nannerl é um poderoso lembrete do que perdemos. Ela viveu na era do Iluminismo, mas os filósofos de então não eram tão iluminados sobre o papel da mulher."

Cita Immanuel Kant como exemplo. O alemão já escreveu pérolas misóginas, como esta sobre uma mulher instruída: "Ela usa seus livros como se serve de seu relógio: para que todos vejam que tem um, ainda que esteja parado ou não marque a hora certa".

CABELUDA

Em 2006, Milo visitou a Áustria para os 250 anos de nascimento de Mozart. Viu uma tela no museu Mozarthaus Vienna. "Wolfgang sentado no piano com uma mulher, suas mãos cruzadas, eles tocando juntos. E ela tinha o cabelão mais magnífico que já vi", descreve à Folha.

Assim descobriu Nannerl. "Sabemos tanto da vida de Wolfgang, não pude acreditar que sua irmã genial, que excursionou com ele quando crianças, como iguais, foi apagada. Senti raiva. Senti que alguém deveria contar essa história. E aí pensei: talvez eu."

Milo escreveu o monólogo com base em centenas de cartas trocadas pela família e guardadas por Nannerl. Numa delas, de 1780, ela comenta sobre a cabeleira que tanto chamou atenção da atriz.
"Escrevo a você com uma ereção sobre minha cabeça. E estou com muito medo de queimar meu cabelo", contou em carta ao irmão. Com o penteado digno da rainha Maria Antonieta, posaria para o retrato que Sylvia encontrou no museu de Viena.

A escatologia corria solta nas missivas da família Mozart –numa, a matriarca escreve ao marido: "Desejo-lhe boa noite, meu querido. Mas antes cague em sua cama".

Menos humor tinha Leopold sobre o futuro da primogênita. Quando fez 18 anos, Nannerl já não saía mais nas longas turnês pela Europa.

Em cartas, seu irmão a encorajava a compor mais. Hoje não se conhece nenhum trabalho dela, embora há quem levante suspeitas de que tenha ajudado Wolfgang a compor sua famosa primeira sinfonia.

Quando a mãe deles morreu, em 1778, coube a Nannerl o papel de "dona de casa". A moça teve vários pretendentes, mas não ficou com aquele que seria o amor de sua vida, um capitão chamado Franz. O pai não aprovava a união.
Ela acabou casando aos 33, com um homem 15 anos mais velho e duas vezes viúvo –um "ato de desespero", nas palavras de Jane Glover, autora de "Mozart's Women".

"Uma vez casada, ela poderia continuar a se apresentar em 'concertos amadores', sem nunca ser paga –isso seria escandaloso", diz Milo.

Ela continuou a dedilhar seu piano, sozinha, num pequeno quarto na vila onde o casal foi morar. Mas o instrumento foi destruído num inverno, por frio e umidade.

O marido morreu aos 65, em 1801, e ela voltou a Salzburgo. A filha Jeanette morreu quatro anos depois, aos 16, e o filho Leopold se alistou no exército e foi feito prisioneiro. Nannerl tocou até a velhice. Nunca em público.


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