Folha de S. Paulo


Expansão do universo de drag queens gera série, filme e curso gratuito em SP

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"Se não doer é porque está fazendo algo errado", postula Malonna, que jura ter 21 anos, oito a menos do que consta no RG. Ela ajeita uma peruca loira na cabeça do repórter da Folha e ouve queixas de espasmos na panturrilha, depois de 20 minutos em cima de um par de salto alto.

Na noite de terça (8), Malonna está num quarto abarrotado de figurinos pomposos e penduricalhos reluzentes na oficina que mantém desde 2014 na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo.

Drag queen há uma década, ela definiu —sem querer— o que se encontra em um workshop de montagem de drag queen: as mais variadas formas de dor escondidas sob o glamour burlesco que tanto atrai adeptos —e cada vez mais.

Isadora Brant/Folhapress
Rodolfo Viana, repórter da Folha, após maquiagem e suor
Rodolfo Viana, repórter da Folha, após maquiagem e suor

Hoje em dia, "drag queens parecem Gremlins: você joga água e elas se multiplicam", brinca Silvetty Montilla, 48, uma das artistas mais célebres do cenário LGBT, com duas décadas de profissão. Após o Carnaval, ela estreia a segunda temporada de "Academia de Drags", no YouTube —espécie de versão brasileira do reality "RuPaul's Drag Race". Até o momento, a produção recebeu cerca de 200 inscrições, 130 a mais do que a edição anterior, de 2014.

O número confirma: o universo das drags está em expansão. Parte do fenômeno pode ser atribuído ao programa de RuPaul, que serviu de inspiração também para o documentário "TupiniQueens", que retrata a vida das artistas além da noite purpurinada.

"A série [de RuPaul] foi curiosa. Mesmo sendo homossexual eu tinha muito preconceito contra esse tipo de manifestação", conta João Monteiro, diretor do longa. "Resolvi investigar a cena nacional e encontrei bastante gente nova, de 16 a 25 anos."

O filme estreou no Festival Mix Brasil em novembro e, a uma semana da exibição, estava com os 350 ingressos esgotados. Agora segue para festivais ao redor do mundo, como o de San Sebastián, na Espanha, e o Queer Lisboa.

Uma das personagens de "TupiniQueens" é a própria Malonna. Acostumada a criar figurinos para drag queens, ela viu a produção da oficina saltar de duas roupas em 2014 para 30 em 2015.

O QUE É SER DRAG

No sétimo andar do Sesc Consolação, uma placa na porta indica: ali acontece a oficina de montagem de drag queen. Trata-se de uma parte do projeto "Damas da Noite", que leva ao público geral atividades baseadas no universo LGBT.

No primeiro dia (9), 12 homens —incluindo o repórter da Folha— e três mulheres, sentados no chão, formam um círculo para ouvir Gabriel Leto, 21: "Tenho medo de ser agredido, medo que aconteça algo na rua", diz. "Apenas me sinto eu mesma, completa, quando estou montada. É quando eu não preciso sufocar coisas dentro de mim, sabe?".

O pavor de Gabriel faz sentido. De acordo com a associação Grupo Gay da Bahia, houve 317 assassinatos e nove suicídios de homossexuais no Brasil, em 2014.

Por isso, Laura Diniz, 29, acredita que "se montar e sair à rua é um ato político contra a intolerância". "É você mostrar ao mundo que é livre para ser o que você é", diz a aluna do curso.

"Ser drag queen não é só maquiagem, figurino e performance: o segredo está aqui", bate no peito José Carlos Gomes, 32 anos. Zecarlos, como é conhecido, é drag desde 2009. Montou, no ano seguinte, o Drag Queen Curso, que dura dois meses —uma versão estendida do workshop do Sesc.

Ele vê a drag queen como uma artista semelhante ao clown e que, aos poucos, está sendo dissociada do universo LGBT e adotada por heterossexuais —homens e mulheres. Na turma do curso, havia três héteros, como Amanda Caetano. A cantora e atriz de 34 anos busca no curso um complemento para sua carreira. "Precisava de algo que me despertasse."

EU E MEU CARÃO

"Corram", ordena Zecarlos. Na sala, pequena demais para 15 pessoas em movimento, algumas trombadas ocorrem. "Agora se joguem no chão e rolem." Os corpos colidem. "Não importa —passem um por cima e outro por baixo." O objetivo é ter contato humano. "Agora levantem e encarem quem estiver do lado." O exercício faz com que o aluno adquira empatia imediata ao olhar fixamente, por meio minuto, para um estranho a dois palmos de distância. Pode-se ver contornos, traços, expressões de aflição ou sorrisos acolhedores. "Agora troquem de parceiros."

O primeiro dia chega ao fim com exercícios sobre o salto alto, como cair e levantar como uma diva. Para quem está acostumado a calçar All Star, andar de salto faz você se sentir um flamingo bêbado, mas basta trocar de sapato por um com salto mais grosso e adotar a dica de Malonna: "Trava o rabo, abre os ombros, ergue o nariz e vai".

Na segunda aula (10), as panturrilhas parecem moídas, mas a dor maior está reservada para o fim daquele dia: aula de maquiagem.

Diante do espelho, Zecarlos comenta com Cauê Vilella, 22: "Vai tirar a barba? Tira não! Faz uma coisa meio Conchita [Wurst, cantora e drag queen austríaca que tem os pelos do rosto]". É uma boa sugestão —de cara limpa, este repórter tem feição de bolacha Trakinas.

Mas os pelos que causam transtornos são outros. "Você precisa esconder a sobrancelha", alerta Pedro Machitte, 27. Ele explica que uma alternativa para quem não quer raspá-la é colar os pelos na pele. Estende o tubo de cola Pritt, e ordena: "Aperta e desliza para cima". A alternativa é cola líquida —o resultado é melhor, mas mais difícil de tirar.

Sem sobrancelha visível, é hora de trabalhar a pele. Com o auxílio das amigas —o gênero masculino foi tacitamente eliminado no primeiro dia e todo mundo se trata pelo feminino desde então—, aplico "paint stick", base, pó translúcido, "pancake", sombra, batom.

"Desenhe três pontos onde vocês querem a sobrancelha", instrui Zecarlos. "Um onde começa, outro onde faz o arco e o terceiro onde termina." Feito isso, basta ligar os pontos com um lápis de olho. "Depois engrossem a linha", diz.

Com uma peruca verde e cílios postiços, pareço uma personagem de "Jogos Vorazes" —aquela que acompanha os tributos à Capital.

Ao fim da aula, meia hora lavando o rosto não garante que a maquiagem saia completamente. A cara fica manchada de preto, como se recém-saída de uma mina de carvão. A cola na sobrancelha sai completamente sete horas depois —não sem o uso da força, o que leva a arrancar metade dos pelos no processo.

Apesar da cãibra na panturrilha e da sobrancelha machucada, de todo o esgotamento físico e mental, ainda é preciso ensaiar a coreografia para a aula final.

Na sexta (11), após um desfile, os alunos apresentam seus shows —vão de Britney Spears ao obscuro Johnny Hooker. Mas músicas, figurinos, trejeitos exagerados e camadas de maquiagem não bastam à drag queen: é preciso deixar fluir uma catarse de alegrias e angústias que culmina em expressão artística.

Angústia como a de Amanda. Ela afirma que as aulas a ajudaram "em um momento difícil da vida": sem entrar em detalhes, conta que perdeu o marido há menos de dois anos. "Acho que estou começando a superar e o curso me ajudou muito." Enquanto Amanda amarga a perda, Julia Krilovah, sua drag batizada com o sobrenome da avó, é apenas amor, e dela recebi o sorriso acolhedor no primeiro dia.


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