Folha de S. Paulo


Globo monta teatro dentro de seus estúdios para desenvolver atores

Em outubro, Mariana Lima, atriz de peças como "O Livro de Jó", apresentada num hospital, e "Apocalipse 1,11", num presídio, diz ter sentido "até um déjà-vu" como se estivesse no Vertigem, seu antigo grupo teatral:

"Quando vi, estava indo fazer uma peça dentro do Projac, lugar onde eu vou para gravar e que não tem quase relação com teatro. Tinha um aspecto de ocupação."

Projac é onde se concentram os estúdios da Globo no Rio. No auditório de 80 lugares do MAC, Módulo de Apoio à Produção, ela mostrou "Coração Delator", criado a partir do conto de Edgar Allan Poe por Thiago Teitelroit, diretor da novela "Sete Vidas".

"A Globo veio com toda a infraestrutura, que não era fácil", diz. "Uma caixa branca foi construída pelo departamento de cenário. E acontecia uma mágica, com traquitana construída pelo departamento de efeitos especiais. Brotava sangue do chão e do teto."

A junção de áreas é parte de um projeto teatral que ganhou forma aos poucos. Começou há cerca de dois anos, com leituras dramáticas em outra sala no mesmo MAC, numa mesa de 40 lugares para reuniões de executivos.

Quem apareceu um dia para ver foi Regina Duarte: "Era uma coisa que não acontecia havia muito na TV Globo, [onde] trabalha cada um no seu projeto. Esse encontro de núcleos, falando do nosso ofício, me pareceu extraordinário".

QUALIDADE DO TEXTO

Ela sugeriu então uma leitura de "É", de Millôr Fernandes, e depois de "O Berço do Herói", peça de Dias Gomes que ele adaptou para a novela "Roque Santeiro", em que Regina fez seu célebre papel.

"Eu li a Viúva Porcina, o Lima [Duarte] leu o Sinhozinho [Malta]. Foi comovente, para nós que vivemos e para a plateia de colegas, encantados com a qualidade do texto, a inteligência com que abordava questões na ditadura."

Regina tem longa trajetória de palco, com peças como "A Megera Domada", de Shakespeare, dirigida em 1965 por Antunes Filho. Após as leituras, propôs apresentar no MAC a peça que havia acabado de dirigir, "2X Matéi".

"Colocamos 16 atores num auditório tipo três metros por seis e foi genial. Se couberam 16, cabe qualquer espetáculo ali. Na verdade, o importante mesmo, no projeto, é o ator."

Nelson Fonseca, gerente artístico de elenco da Globo, diz que foi Regina que levantou a questão: "Vamos fazer um teatro?". A atriz estava "querendo oferecer o ofício dela aos atores novatos" e "inaugurou" o espaço.

Seguiram-se outras peças, até terminar a temporada com "(Des)Conhecidos", de atores mais novatos, como Samuel Toledo e Igor Angelkorte. O público é também majoritariamente de atores.

"Tenho certeza que os atores querem isso, e não têm feito porque fica cada vez mais difícil produzir teatro", diz Regina. "Se a TV Globo proporciona um espaço lá, de pesquisa, de instrumentos do ator, é um maná no deserto."

Jazette Guedes, diretora de talentos artísticos da Globo, diz que desde o início "é casa cheia, esgota, não tem espaço para todo mundo". Leituras, espetáculos e os debates que se seguem fazem parte de um esforço de "preparação", sobretudo para atores, que inclui outras ações.

Como adianta a gerente de desenvolvimento artístico, Marcia Lins, a próxima temporada já terá em abril um workshop do teatro londrino Shakespeare's Globe, a ser dado por Yolanda Vazquez, que há pouco fez Beatrice em "Muito Barulho por Nada".

Em 2015, a oficina foi com Juan Carlos Corazza, diretor teatral argentino baseado na Espanha, preparador de atores como Javier Bardem. Antes, o Théâtre du Soleil, de Paris, fez trabalho parecido.

Na outra ponta, as produções já ameaçam sair do Projac (onde são restritas a funcionários) para o público geral. "Coração Delator" está em conversas para participar do Festival de Teatro de Curitiba. Mariana Lima festeja, pela "continuidade do trabalho", que, diz, "ficou forte apesar de bastante experimental".

Fonseca acrescenta que está em desenho o que chama de "trupe em cena", projeto também a ser encabeçado por Ary Coslov e Ulysses Cruz, diretores da Globo com origem no teatro. "Seriam montagens com elencos nossos, atores ainda em formação junto com os veteranos, que a gente apresentasse dentro ou fora, como uma trupe mesmo."

*

frases

"Tenho feito séries fora da Globo também com qualidade excepcional. A Globo tem investido nos últimos ano, também graças à concorrência. As pessoas estão preocupadas em subir a qualidade, o que é refletido nessas investigações, na preparação do ator"
MARIANA LIMA

"É o ator trabalhar o ofício dele, entre uma novela e outra. É esse o grande mérito do projeto. O ator investir no instrumental do que faz, e não simplesmente ficar em casa, distraído. Tem um tempo de descanso, mas é um descanso em que ele não para"
REGINA DUARTE


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