Folha de S. Paulo


David Bowie revisita filme de 1976 em musical que estreia em Nova York

Antes mesmo de o público se acomodar, Thomas Jerome Newton já está apagado, imóvel, deitado, descalço, enrolado numa manta, no palco do New York Theatre Workshop. Na porta da geladeira aberta, cinco garrafas de gim dão ideia da ressaca do homem largado no chão.

Terminado o apelo para que a audiência desligue seus aparelhos de telefone celular, o protagonista da peça "Lazarus" é despertado pela televisão gigante em seu apartamento. Imagens desconexas a um volume quase ensurdecedor levam à primeira cena de uma sucessão de delírios e desesperos do personagem nas duas horas ininterruptas de apresentação.

Newton é a releitura do extraterrestre de "O Homem que Caiu na Terra", filme de 1976, dirigido por Nicolas Roeg, que, por sua vez, é uma adaptação do romance de ficção científica homônimo de Walter Trevis, de 1963.

A ausência mais presente é a de David Bowie, compositor da trilha sonora e coautor da adaptação teatral que estrearia nesta segunda-feira (7), em Nova York, sobre o protagonista que ele próprio viveu no filme de quase 40 anos atrás. A Folha assistiu a uma pré-estreia no sábado (5).

Em compensação, discos do astro inglês ficarão durante toda a encenação no canto direito do palco, ao lado de uma vitrola. Canções de Bowie, uma minoria delas composta para a produção, são a linha narrativa do musical, interpretadas pelos atores e uma banda disposta no fundo do palco, atrás de um vidro fumê.

A peça é, de certa forma, um acerto de contas. Quando foi convidado a atuar em "O Homem...", Bowie se incumbiu de fazer a trilha sonora, mas o trabalho foi dispensado. Um ano depois, ao lançar o disco "Low", o artista mandou uma cópia ao diretor, com o bilhete: "Isso é o que eu queria ter feito pelo filme", conta o crítico Sean Doyle, em artigo da publicação da Film Society of Lincoln Center.

Em 2013, Bowie procurou o produtor Robert Fox com a ideia de dar continuidade à vida do alienígena imortal. Fox sugeriu uma parceria com o premiado dramaturgo irlandês Enda Walsh, que faria com ele a montagem. O diretor belga Ivo van Hove completaria a equipe.

Na versão em cartaz, Newton, interpretado por Michael Hall, está preso na Terra, sufocado pela nostalgia e por um amor interrompido. Ele deseja retomar sua vida no planeta desértico de onde veio e, impotente, afoga-se em gim para aliviar a claustrofobia. O alcoolismo foi herdado do personagem original, bem como o apego à televisão, sua vitrine da humanidade.

"Sou um homem morrendo que não pode morrer", ele desabafa. "Não poder morrer é uma piada terrível pra cacete."

Há uma coleção de papeis igualmente perturbados e perturbadores. Anjas de preto, um destruidor do amor. Uma assistente que se recusa a ser chamada de empregada, Elly (Cristin Milioti), é encarregada de arrumar o apartamento, mas, apaixonada, bagunça a vida de Newton ao misturar a confusão interna dele com a própria.

Uma menina loira de vestido branco rendado, interpretada por Sophia Anna Caruso, 14, sabe tudo sobre Newton e nada sobre si mesma, nem sequer seu nome. Ela atua na sua consciência como voz interna que o ajuda a traçar um plano de fuga, ao som, entre outras, de "Life on Mars?" ("vida em Marte?"), hit de Bowie de 1971.

"Não posso continuar. Você precisa me ajudar", suplica Newton à menina. "O que você quer?", ela indaga. "Ir embora. Voltar para as estrelas."

ESGOTADO

O musical foi submetido a uma dieta rigorosa de informação, o que criou expectativa. Os ingressos iniciais da temporada, em cartaz até 17 de janeiro, esgotaram-se em três horas, recorde para a casa.

Os atores admitiram apreensão ao interpretar canções de Bowie, mas relataram "generosidade" do "amável" compositor. De fato, não há disputas. Quando interpretou Newton, o artista disse que se envolvera tanto que se sentia "tão alienado quanto" seu personagem. "O que você vê lá é David Bowie", afirmou, em entrevista em 1992.

Continua valendo. O artista ainda é o protagonista, sem nem aparecer.


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