Folha de S. Paulo


Documentário de Dave Navarro conta a história do assassinato de sua mãe

Numa manhã de 2013 o roqueiro Dave Navarro e seu melhor amigo, Todd Newman, pararam sua limusine no estacionamento de visitantes do presídio estadual San Quentin. Tinham viajado de Los Angeles, a seis horas de distância, com o plano de fazer uma visita não anunciada ao homem responsável pelo assassinato da mãe de Navarro, Connie, e uma amiga íntima dela, Sue Jory, em 1983.

Navarro explicou sua decisão de procurar o detento, John Riccardi: "Tenho um problema: quando sinto medo de uma coisa, sinto que tenho que fazer essa coisa."

Vestido inteiramente de preto, como é seu costume (com a exceção de meias com a estampa da bandeira britânica), Navarro, 48 anos, recordou a viagem numa entrevista recente e emotiva dada num quarto de hotel de Nova York.

A limusine não foi algum tipo de gesto de roqueiro da parte da Navarro, guitarrista da banda de hard rock Jane's Addiction, mas uma preocupação prática. Ele e Newman estavam fazendo um documentário sobre os assassinatos e suas consequências, e o veículo tinha espaço adicional suficiente para eles serem filmados por dois cinegrafistas enquanto conversavam no banco de trás. O filme é intitulado "Mourning Son", tem direção de Newman e produção executiva de Navarro. Será lançado nesta terça-feira (1º) no sistema on demand.

Dave Navarro tinha 15 anos na época do crime. Ele vivia transitando entre seu pai e sua mãe, que haviam se divorciado anos antes. Na noite de 3 de março de 1983, Riccardi —com quem Connie Navarro tinha terminado seu relacionamento naquele ano— atirou nas duas mulheres no apartamento de Connie em West Los Angeles. Graças a uma mudança nas datas previstas de visitas, Dave Navarro estava com seu pai naquela noite. Não fosse por isso, falou, ele não tem dúvida de que teria sido morto também.

Reprodução
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O músico Dave Navarro

As autoridades levaram quase oito anos para capturar Riccardi, com a ajuda do programa de televisão "America's Most Wanted". Em 1994 ele foi condenado pelos assassinatos e sentenciado à morte. A Suprema Corte da Califórnia revogou a sentença em 2012, em parte por um problema na seleção dos jurados, e Riccardi então foi sentenciado à prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional.

Cinéfilos com pouca experiência de fazer cinema, Navarro e Newman primeiro tiveram a ideia de fazer o documentário em 2007. "Uma das maneiras pelas quais as pessoas que sofreram experiências traumáticas superam o trauma é percorrer todo o sofrimento", disse Navarro. Apesar do tema angustiante, "nos sentíamos muito seguros, porque controlávamos tudo".

Nem ele nem Newman tinham interesse em criar um documentário sobre rock. Sempre pensamos: 'Se você quiser saber sobre essas coisas, procure Dave Navarro no Google'", disse Newman.

De fato, "Mourning Son" praticamente não menciona a Jane's Addiction, a banda na qual Navarro entrou em 1986. Conhecido por canções como "Jane Says" e "Been Caught Stealing", o grupo já se desfez e refez, mas está junto outra vez desde 2008. Tampouco é mencionado o período nos anos 1990 quando Navarro foi guitarrista do Red Hot Chili Peppers, e seu trabalho atual de apresentador da série "Ink Master", da Spike TV, e seu casamento com a modelo e atriz Carmen Electra, que chegou ao fim em 2007, são citados apenas de passagem.

Fernanda Hermanny/Reuters
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Chris Chaney, Stephen Perkins, Perry Farrel E Dave Navarro, membros da banda Jane's Addiction

Mas "Mourning Son" utiliza imagens explícitas de arquivo para documentar a relação de Navarro com a heroína, que ele diz que usou para amortecer a dor da morte de sua mãe. Ele descreveu essa parte do filme como cautelar; disse que não injeta drogas há 15 anos e está totalmente sóbrio há mais de quatro.

"Mourning Son" enfatiza fortemente outro dos mecanismos usados por Navarro para lidar com o sofrimento: o humor, especialmente o humor negro. Uma cena, em que Navarro e Newman batem papo diante do prédio onde os assassinatos aconteceram, chega a ter sua trilha sonora própria, com risadas. Eles quiserem enfatizar "a importância do humor para a cura", explicou Navarro. "Foi importante para nós haver essa quebra por cinco segundos. Porque é tudo pesado, pesado, pesado. Em dado momento fica tudo demais."

O filme intencionalmente revela pouco sobre Riccardi. "Não quero transformar esse cara em um personagem interessante", explicou Navarro. "Curto muitos programas policiais —"48 Hours", "Dateline", "Investigation Discovery". Esses programas raramente enfocam a família, o horror e o impacto emocional. Sempre enfatizam o assassino, e não era isso que eu quis fazer."

Por essa razão ele hoje fica contente porque, quando finalmente se sentou para conversar com Riccardi, as regras do presídio não permitiram que o encontro fosse filmado.

Navarro disse que o encontro não foi como ele tinha previsto. "Eu queria que me fizesse sentir desdém, raiva e ódio, e isso não aconteceu." Não houve confronto, não houve gritos, "apenas uma troca de palavras bem incômoda".

Mas houve intensidade emocional. "Muitas coisas voltaram à minha cabeça", contou Navarro. "Era quase como se eu estivesse me olhando como um observador externo. Levei um instante para eu colocar meu corpo, minha mente e minha estabilidade emocional e espiritual todos em sintonia outra vez."

Ele acabou tendo uma percepção contundente sobre Riccardi: "Ele é um velho qualquer que está morrendo na prisão, nada mais".

O baterista da Jane's Addiction, Stephen Perkins, que aparece no documentário, disse que assistir ao filme o levou a ter uma compreensão melhor de Navarro, seu amigo íntimo desde a primeira série do colégio. "Vi mais tristeza que eu não sabia que existia ali." Ele sentiu que, ao fazer o filme, Navarro abandonou o escudo protetor que ergueu à sua volta depois do assassinato de sua mãe. "Estou começando a encontrar o Dave real."

Mario Anzuoni/Reuters
Guitarist Dave Navarro performs at the 10th Annual MusiCares MAP Fund Benefit concert at Club Nokia in Los Angeles, California May 12, 2014. REUTERS/Mario Anzuoni (UNITED STATES - Tags: ENTERTAINMENT) ORG XMIT: MA215
Dave Navarro durante show no MusiCares MAP Fund Benefit, em Los Angeles

Navarro, por sua vez, disse que se sentiu como se tivesse encontrado sua mãe. "Depois que minha mãe morreu, eu sempre me concentrei sobre a morte, o assassinato, a tragédia, a perda, o trauma. Hoje estou muito mais ligado em quem ela era como pessoa do que eu estava antes de fazermos o filme. Tive que mergulhar fundo no trauma para chegar à beleza do meu relacionamento com ela."

Navarro disse que hoje se sente mais bem equipado para encarar os outros desafios da vida: "Da próxima vez em que eu tiver que subir num palco diante de uma plateia de festival, talvez seja um pouco menos intimidador, porque já encarei o assassino da minha mãe. Isso põe as coisas na perspectiva certa."

Traduzido por CLARA ALLAIN


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