Folha de S. Paulo


Em São Paulo, a atriz Marisa Berenson relembra perfeccionismo de Kubrick

Da primeira ligação que a atriz americana Marisa Berenson recebeu do cineasta Stanley Kubrick até o instante em que assumiu a personagem Lady Lyndon, do longa "Barry Lyndon" (1975), passaram-se seis meses.

Um ano e meio de gravações depois, entre a Irlanda e a Inglaterra, ela saía da "bolha" do século 18 criada pelo diretor de "Laranja Mecânica" (1971) e "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968), e via a realidade pela primeira vez.

"Foi estranho ver o mundo fora da casa em que vivemos juntos", diz Berenson à Folha, 40 anos após o lançamento desse que é considerado o filme mais "difícil" da filmografia de Kubrick.

Em 18 de dezembro, quando se completam quatro décadas do longa –e do massacre de crítica e público que recebeu nos EUA–, "Barry Lyndon", ela diz, "continua atemporal, sem idade".

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A atriz Marisa Berenson no filme
Marisa Berenson em 'Barry Lyndon', de Stanley Kubrick

A tragédia de Redmond Barry (Ryan O'Neil), o irlandês errante e alpinista social que casa por interesse com uma milionária viúva, Lady Lyndon (Berenson), é um "retrato do comportamento humano e da aristocracia".

"Mesmo se passando no século 18, se você olhar para minha personagem, uma mulher subjugada pela força dos homens, verá que ainda há muito dessa falta de liberdade e de direitos na vida das mulheres [do século 21]", diz. "Veja as diretoras e as atrizes de cinema, por exemplo: ganham um salário muito menor que o dos homens."

Não que o dinheiro importasse tanto para ela em 1973, quando filmou "Lyndon", logo após fazer sucesso em "Cabaret" (1972), de Bob Fosse, e "Morte em Veneza" (1971), de Luchino Visconti. Filha de diplomata e condessa, Berenson é neta de Elsa Schiaparelli (1890-1973), estilista surrealista e um dos nomes mais importantes da moda mundial.

Sentada na poltrona de um hotel de luxo em São Paulo, cidade na qual lança uma linha de joias de sua autoria para a grife Amsterdam Sauer, Berenson, 68, relembra os tempos em que era chamada de "rainha da noite" –nos anos 1970, frequentava as melhores boates do mundo acompanhada por amigos famosos, como o artista plástico Andy Warhol.

"Eram tempos de muito experimentalismo, as pessoas estavam dispostas a criar e testar novidades. Stanley era uma dessas pessoas", diz.

PIONEIRISMO

O pioneirismo de "Barry Lyndon" só foi reconhecido nos EUA após a morte de Kubrick, que concebeu o cenário e os personagens a partir do romance "As Memórias de Barry Lyndon" (1844), do escritor britânico William Makepeace Thackeray.

"Os franceses acharam [o filme de três horas] o melhor de Kubrick; os japoneses amaram. Mas os americanos [principal público-alvo de Hollywood] só gostavam de filmes rápidos. É preciso sentar e contemplar a história de 'Lyndon'", conta Berenson.

Pela primeira vez no cinema um filme foi rodado apenas com o uso de luz natural e de velas, efeito conquistado por Kubrick com o uso de lentes Carl Zeiss de 0.7 mm– o cineasta comprou três das dez disponíveis no mundo.

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O cineasta Stanley Kubrick nas filmagens de
O cineasta (à esq.) e atores durante as filmagens do longa

As características da lente –a mesma usada pela Nasa no Programa Apollo– permitiram que ele não usasse iluminação artificial e criasse a aura de penumbra dos quadros realistas do século 18.

"O problema era que não podíamos nos mover, senão saíamos de foco", diz a atriz. "Foi difícil atuar nessas condições. E Stanley era muito perfeccionista. Para filmar a fechadura de uma porta ele podia passar horas, às vezes dias, testando o plano ideal."

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CURIOSIDADES

Lentes da Nasa

As três horas de planos longos e closes lentos de "Barry Lyndon" foram filmadas com três das dez lentes Carl Zeiss Planar 0.7 mm produzidas no mundo. Elas foram fabricadas sob encomenda para o programa espacial Apollo, da Nasa, em 1966, para registrar imagens da lua sem a luz solar

Terrorismo

O cineasta mudou-se com família e equipe para a Irlanda em 1973. No ano seguinte, o Exército Republicano Irlandês soube do longa e incluiu o nome de Kubrick na lista de inimigos. Toda a equipe saiu às pressas do país e o diretor, com sua família, fugiu de barco com um nome falso. O restante das filmagens ocorreu na Inglaterra

Napoleão

Uma obsessão de Kubrick era fazer uma cinebiografia sobre Napoleão Bonaparte. Após tentativas frustradas de convencer estúdios a bancar os US$ 5 milhões necessários, o cineasta filmou "Laranja Mecânica" (1971). Mesmo com o êxito do filme, nenhum estúdio desembolsou o sonho de Kubrick. Com parte da pesquisa de "Napolão", ele filmou "Barry Lyndon". Steven Spielberg anunciou recentemente que produzirá o "Napoleão" de Kubrick

Contemplativo

Kubrick tinha uma obsessão pelos atores e não os deixava sair para as festas de fim de ano se estivessem filmando. Trancada por três meses num castelo da Irlanda (sem ter filmado uma única cena completa), Marisa Berenson encontrou o tom da submissa de Lady Lyndon. Um plano de "Barry Lyndon", de acordo com ela, levava horas para ser finalizado e o clima contemplativo influenciava a equipe


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