Folha de S. Paulo


Autor chinês vem ao Brasil e narra desilusão com comunismo de Mao

Apesar de ser uma manhã clara em Pequim, a penumbra domina o longo corredor da faculdade de Direito da Universidade Renmin, uma das melhoras da China. A porta de um dos escritórios explode o único facho luminoso do ambiente, delineando a silhueta esguia do professor.

No mundo de sombras da Justiça chinesa, He Jiahong é um caso único. Jurista de ponta e escritor de talento, seus romances viraram best-sellers no país e ganharam versões em vários idiomas, jogando luz num universo geralmente impenetrável.

He chega nesta quinta (19) para sua primeira visita ao Brasil, e um de seus livros de maior sucesso, "Crimes de Sangue", deve ser lançado em breve pela editora Batel. No Rio, ele se encontrará com juristas e falará sobre o sistema judiciário chinês.

Será uma rara oportunidade para os brasileiros conhecerem em primeira mão a trajetória de uma geração que nasceu sob a fome em massa do fim da década de 1950, atravessou a histeria ideológica coletiva da Revolução Cultural (1966-1977) e desembocou na abertura econômica e social que colocou a China de volta ao topo entre as maiores potências mundiais.

Magro e discreto, He tem a fala baixa, mas decidida. Seus romances tratam de temas duros e tragédias pessoais, mas deixam transparecer um humor inesperado, que o escritor também revela em detalhes de sua aparência: contrastando com o sóbrio terno escuro, usa uma gravata com coelhinhos da Playboy.

Nascido em Pequim, He foi parar aos 16 anos numa fazenda coletiva em Helongjiang, nordeste do país, como parte do programa de reeducação ordenado por Mao Tsé-tung na Revolução Cultural. Trabalhou oito anos como motorista de trator, de sol a sol, mas não se importava.

"Eu era muito revolucionário, acreditava no sonho comunista. Achava que estava fazendo a coisa certa, não só para a China, mas para toda a humanidade", explicou.

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O escritor He Jiahong. Foto: Divulgacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
He Jiahong, escritor chinês de thrillers jurídicos

Seu mundo caiu em 1972, quando soube da prisão do dirigente comunista Lin Biao, um ídolo entre os jovens da época, tido como o "mais revolucionário dos revolucionários". Foi seu primeiro contato com a arbitrariedade do regime comunista, destroçou sua fé no sistema e tornou os quatro anos finais de reeducação no campo imensamente penosos. "Foi um choque, fiquei perdido. Enquanto acreditava no sistema eu aceitava sofrer pelo bem comum. Quando a crença acaba, tudo fica muito difícil", relembra.

"Crimes de Sangue", um de seus livros de maior sucesso, é ambientado em uma dessas fazendas coletivas onde ele trabalhou. O protagonista é um jovem advogado que retorna a Pequim depois de estudar nos EUA e é contratado para esclarecer um caso em que suspeita-se de erro da Justiça. Ambientado nos anos 90, reconstitui com prosa ágil um momento em que a China acelerava sua abertura para o mundo, enquanto acompanha a investigação do advogado Hong Jun em busca da verdade na gélida Helongjiang.

Para o autor, a caminhada foi mais longa.

A morte de Mao, em 1976, marcou o fim de uma era. As universidades começaram a ser reabertas e jovens como He puderam sonhar com um futuro melhor que o dos seus pais. Mas aquela era uma fase de transição, ainda fortemente tingida pelas cores da revolução comunista. O ideal de uma sociedade sem classes estava nos slogans pintados nos muros, mas a realidade era outra. A concorrência pelas vagas nas universidades era feroz, e a seleção dos estudantes obedecia a critérios políticos, beneficiando quem vinha de famílias "vermelhas", aquelas com alto pedigree comunista.

Não era o caso de He. Neto de um general do Kuomintang, o partido derrotado pelas forças de Mao que fundaram a China comunista em 1949, ele era considerado de uma família "preta". A ambição de se tornar escritor já havia se manifestado em seus anos de reeducação no campo, quando publicou um poema em um jornal de Helongjiang. Chegou a escrever um romance sobre a vida de jovens intelectuais entre as horas que passava sobre o trator, que não conseguiu publicar.

Quando recebeu permissão para voltar a Pequim, em 1977, o pai estava morto e sua capacidade intelectual foi desprezada por causa do passado familiar "preto". Durante quatro anos, tentou passar o exame de admissão para a universidade, sem sucesso. Só conseguiu trabalho como encanador, numa construção. Lá trabalhava uma jovem médica que mudaria a sua vida.

Começaram a namorar, mas os pais dela não aceitavam o pretendente, um mero encanador situado no ponto baixo da escala ideológica comunista. Ele insistiu e foi desafiado por eles: aceitariam conhecê-lo se o jovem He passasse no exame de admissão da universidade. Foi uma forma de dispensá-lo, mas fracassou. "Eles não acreditavam que eu passaria, mas eu decidi tentar, por amor. Felizmente passei e estamos casados há 35 anos. É uma história com final feliz. Minha mulher mudou a minha vida", diz.

Se a vocação literária começou cedo, a carreira na área jurídica, que o tornaria um dos maiores especialistas em direito penal da China, começou por acaso. O curso de direito era ainda algo novo num país com a Justiça atropelada pela ideologia. A lendária primeira turma de advogados, da qual fazia parte o atual premiê do país, Li Keqiang, havia começado apenas dois anos antes.

He conta que resignou-se a abrir mão do sonho literário por entender a importância de dedicar a vida ao Estado de direito na China. Mas a vocação de escritor falaria mais alto.

Quando a carreira acadêmica decolou, He foi fazer doutorado nos EUA, onde descobriu um gênero literário perfeito para as suas aptidões. Apesar de já ter sido chamado de "John Grisham da China", em referência aos escritor americano de livros de suspense jurídico, sua inspiração foi outro bestseller do gênero, Scott Turrow.

"Quando vi nos EUA livros como 'Inocente', achei que eram manuais jurídicos", conta He, que se encantou com a possibilidade de usar a experiência nos tribunais para escrever romances.

Desde a chegada de Xi Jinping à liderança do Partido Comunista chinês, há três anos, o governo aumentou a repressão a dissidentes e defensores de direitos humanos, ao mesmo tempo em que repete como um mantra que o Estado de direito é uma prioridade. Nos últimos meses, mais de 200 advogados foram presos e alguns tiveram que fugir do país. He prefere não comentar as prisões, mas diz acreditar que a intenção de Xi de reforçar o Estado de direito seja sincera e enfrenta resistências.

"Pelo menos essa é a meta. É difícil comparar nosso modelo com o ocidental, onde há democracia e um judiciario independente, que são elementos basicos", afirma. "Teoricamente, nem o presidente e o premiê estão acima da lei. Na prática, algumas autoridades agem como se estivessem".

Sob a liderança de Xi, o país também deu início à maior campanha contra a corrupção de seu história, o que para He aproxima as realidades atuais de China e Brasil. Ele que quer aprender mais sobre as investigações em curso no Brasil. "Podemos aprender muito com o Brasil, que tem um governo mais transparente e um sistema jurídico independente", diz He.


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