Folha de S. Paulo


Modernista 'cult', Ismael Nery ganha primeira retrospectiva em 15 anos

Espécie de "modernista cult", com obras restritas a coleções particulares, e avesso às principais ideias do movimento do qual participava, o pintor Ismael Nery (1900-1934) ganhou nesta semana uma retrospectiva em São Paulo.

Esquecido por muitos anos, Nery esteve de certa forma sempre à margem do modernismo, por rejeitar o nacionalismo valorizado por seus contemporâneos e por ser católico num período em que a arte negava a cruz.

Segundo a curadora Denise Mattar, o pintor trazia em seus quadros temas que seriam posteriormente desenvolvidos pela psicanálise.

"Ele tratava da pluralidade do ser, essa ideia dos inúmeros 'eus' que existem dentro das pessoas. O lado feminino, o masculino, o lado mais agressivo, o mais doce. A obra de Nery se constrói em paradoxos, aí também está a força de seu trabalho."

A ideia dos diferentes "eus" surge também em seus poemas, apresentado na mostra. Nunca publicados ao longo da vida do artista, os textos foram revelados pelo poeta Murilo Mendes na revista "Ariel", após a morte do amigo.

A exposição perpassa as diferentes fases do pintor: dos primeiros óleos cubistas, produzidos na década de 1920, passando pela série "Chagalliana", resultado de uma estadia na Europa em que conheceu Marc Chagall (1887-1985), até suas produções mais obscuras, feitas após contrair tuberculose, aos 30 –doença da qual padeceria três anos mais tarde, encerrando sua breve carreira.

VÍSCERAS

Estima-se que Nery, nascido em Belém e radicado no Rio, tenha produzido ao longo de sua vida cerca de cem óleos, dos quais 30 são agora expostos, ao lado de 30 desenhos e aquarelas –alguns nunca exibidos ao público.

Os trabalhos, ao todo, foram cedidos por mais de 50 colecionadores de arte.

"Por isso ele é um artista totalmente cult, e é tão raro ter uma retrospectiva: tem uma obra pequena, praticamente toda espalhada nas mão de particulares", explica Denise, responsável por outra mostra de Nery, realizada em 2000, ano de seu centenário.

A religiosidade, por sua vez, não transparecia em suas pinturas, marcadas por traços e temas sensuais, como os inúmeros retratos feitos dele e de sua mulher, Adalgisa, com quem se casou quando ela tinha apenas 15 anos.

Presença feminina marcante em sua produção, a jovem que mais tarde se tornou poeta e jornalista viveu com o pintor um relacionamento conturbado, assombrado pelo espectro da mãe tresloucada de Nery e pela agressividade do marido. O romance foi registrado 25 anos após a morte do artista na autoficção "A Imaginária", escrita por Adalgisa em 1959.

Em um trecho do livro, ela narra como o marido da protagonista, tuberculoso e no leito de morte, abraça a mulher manchando sua roupa de sangue. "Enquanto o sangue se espalhava pelo vestido simples e bem talhado, ela ficava impassível", escreveu.

A história do casal ainda foi retratada no curta "Nery e Adalgisa", de Malu de Martino, que será exibido na Galeria Almeida e Dale, onde acontece a mostra, no dia 12/11, às 19h30, com presença da diretora e da atriz Christiane Torloni, que interpreta Adalgisa.

"Ele pintou muito pouco, e a diferença entre as obras é muito pequena", diz a curadora. "A maior diferença é sentida a partir dos anos 1930, quando ele fica doente."

Amargado pela tuberculose, em seus últimos trabalhos Nery expõe suas vísceras em autorretratos surrealistas que remetem a Frida Kahlo. Ao término de sua vida, afinal, deixa um pouco de sangue também em suas telas.

ISMAEL NERY - EM BUSCA DA ESSÊNCIA
QUANDO de seg. a sex., das 10h às 18h; sáb., das 10h às 14h, até 12/12
ONDE Galeria Almeida e Dale, r. Caconde, 152, tel. (11) 3887-7130
QUANTO grátis

Leia um poema de Ismael Nery:

EU

Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas
Eu sou o que não existe entre o que existe.
Eu sou tudo sem ser coisa alguma.
Eu sou o amor entre os esposos.
Eu sou o marido e a mulher.
Eu sou a unidade infinita.
Eu sou um deus com princípio.
Eu sou poeta!

Eu tenho raiva de ter nascido eu.
Mas eu só gosto de mim e de quem gosta de mim.
O mundo sem mim acabaria inútil.
Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo
Encarregado dos sentidos do universo.
Eu sou o poeta Ismael Nery
Que às vezes não gosta de si.

Eu sou o profeta anônimo.
Eu sou os olhos dos cegos.
Eu sou o ouvido dos surdos.
Eu sou a língua dos mudos.
Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e mudo
Quase como todo o mundo.


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