Folha de S. Paulo


Livro do paulista Marcelo Maluf homenageia as 'Mil e Uma Noites'

Do avô que não conheceu, chegaram ao escritor paulista Marcelo Maluf, 41, só as histórias. Com elas, os silêncios de sua família em torno de episódios passados no Líbano de seus ancestrais.

Tanto as histórias quanto os silêncios tornaram-se material para seu primeiro romance, o recém-publicado "A Imensidão Íntima dos Carneiros", em que ele reimagina a vinda do avô ao Brasil. Em especial, o livro está baseado em uma narrativa que escutou do tio há alguns anos.

"Um dia, ele me chamou para conversar e me contou sobre a morte dos irmãos do meu avô pelos turcos", diz o escritor. "Ele narrou histórias de estavam no subterrâneo, no subsolo da família."

O segredo revelado ajudou Maluf a compreender sua própria narrativa. O enredo lhe deu a entender, também, que seus medos são sua herança, uma ideia recorrente em seu livro: receios são transmissíveis.

Divulgação
O escritor brasileiro Marcelo Maluf, que publica seu primeiro romance
O escritor brasileiro Marcelo Maluf, que publica seu primeiro romance "A Imensidão Íntima dos Carneiros"

"Meu pai sempre foi receoso. Eu não entendia de onde vinha aquele medo. Ele tinha um pavor imenso da violência", afirma. "Meu avô morreu com muita mágoa dos turcos. Ele nunca perdoou. Comecei a entender muitas coisas que estavam embaixo dos panos."

A partir da base real, porém, Maluf recria em estilo fantástico. Prestando homenagem às "Mil e Uma Noites", ele encaixa contos dentro de outros contos e povoa seus relatos com gênios.

A imagem mais recorrente é a dos carneiros que dão título à obra, dos quais o escritor conclui que o berro contém uma "imensidão íntima". São animais, diz, que têm de ser acariciados no queixo. No livro, eles conversam com o avô.

"Meu avô foi pastor no Líbano, e a partir dessa imagem eu soube que os carneiros iam ter um papel importante no livro. Quis aproximar o homem da natureza."

IMIGRAÇÃO

Maluf viveu até os 26 anos em Santa Bárbara d'Oeste (140 km de São Paulo), antes de se mudar para a capital.

Ele já publicou livros infantis e contos. "A Imensidão Íntima dos Carneiros" foi produzido com auxílio do Proac-SP (Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo), que recebeu em 2013.

A obra se aproxima de um conjunto de livros sobre imigrantes libaneses, como os clássicos "Dois Irmãos" (Milton Hatoum) e "Lavoura Arcaica" (Raduan Nassar).

A tradição de sua família aparece durante todo o relato. Sua origem árabe, diz, esteve sempre presente –por exemplo, na culinária– mas era também ausente em coisas que ele não entendia.

Maluf conta ter lido autores ligados aos dois países, como Salim Miguel e Chafic Maluf. "As leituras me empoderaram para lidar com esse universo que, de alguma forma, gritou para mim", diz. "Nunca fiz parte da comunidade árabe, mas esse livro me aproximou dela."

A IMENSIDÃO ÍNTIMA DOS CARNEIROS
AUTOR Marcelo Maluf
EDITORA Reformatório
QUANTO R$ 35 (156 págs.)

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LEIA TRECHO

"O medo estava no princípio de tudo.

O medo dominou gerações e bebeu em pequenas doses a coragem de muitos homens e mulheres de nossa família. Nós sempre estivemos sob o seu domínio. O medo estava em nossos ancestrais, os Gassanidas, em Huran, próximo às colinas de Golan. No ano 427 d.C, um sujeito chamado Abu Abdallah, nosso ancestral mais remoto, foi perseguido e morto pelos muçulmanos com 128 golpes de sabre, apenas por ser cristão. Sua mãe, que assistia a tudo, gritava (...): "Morra como um homem, meu filho, não chore". Mas Abu Abdallah chorou. Foi ali, nas lágrimas que escorriam de seu rosto, que nasceu o medo que iria chegar até nós.

O medo seguiu sua jornada, como as águas de um rio fazendo o seu percurso, e desaguou em Simão, meu bisavô, ao ouvir o trotar dos cavalos dos soldados turcos aproximarem-se da aldeia. O medo estava em Assaad, seu filho, quando pastoreava carneiros nas montanhas de Zahle, e estava em Michel, meu pai, quando vendia cambraia, gabardine e organza em sua pequena loja em Santa Bárbara D'Oeste.

Quando eu nasci, (...) o medo estava no meu primeiro choro. (...) Um medo genético passado de pai para filho, de avô para neto."


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