Folha de S. Paulo


Gomes cria fábula do declínio português em 'As Mil e Uma Noites'

"De onde nascem as histórias?", pergunta um barbudo de turbante e trajes nobres à filha. "Dos medos e desejos dos homens", ela responde. "E para que servem?", insiste. "Para nos ajudar a sobreviver."

O diálogo entre o grão-vizir e Sherazade na última parte do tríptico "As Mil e Uma Noites" resume o mote do mastodonte cinematográfico (seis horas e 21 minutos de duração total) de Miguel Gomes ("Tabu"): a jovem do clássico da literatura, que adia sua sentença de morte a cada madrugada narrando anedotas ao rei-carrasco, não está sozinha. Contar para viver, eis um destino universal.

Os dois primeiros volumes (como o cineasta português nomeou os segmentos de pouco mais de duas horas cada), "O Inquieto" e "O Desolado", estreiam no sábado (24), na Mostra Internacional de São Paulo. O terceiro, "O Encantado", passa a partir do dia 31. Gomes chegará à cidade em 30/10.

Exibido pela primeira vez em maio, em Cannes, o filme foi saudado como o grande destaque do festival. Há algumas semanas, a Academia Portuguesa escolheu o segundo "tomo" para representar o país na disputa pelo Oscar de melhor longa estrangeiro.

"Tentamos fazer com que cada volume tivesse a sua própria lógica, oferecesse uma experiência diferente", diz à Folha o diretor, por telefone, de Lisboa. "Mas existe um jogo de espelhos que faz com que o verdadeiro filme surja da visão dos três."

CRISE

Não se trata de uma adaptação da coletânea de narrativas folclóricas que o português descobriu aos 12 anos –e que nunca leu até o fim–, ainda que gênios alforriados de lâmpadas, animais falantes e mercadores astutos como os do livro se "infiltrem" nos relatos com que a Sherazade do filme distrai seu captor.

Antes, Gomes se vale da estrutura do calhamaço, com histórias que "saem" de outras, para radiografar o estado de ânimo de um Portugal combalido economicamente e sob intervenção da "troika" das finanças do continente (Banco Central Europeu, FMI e Comissão Europeia).

"Não poderia rodar um filme que virasse as costas para o estado atual da sociedade portuguesa", afirma o cineasta, que teve certeza da pertinência do projeto ao negar um presente à filha de então cinco anos e ouvir de bate-pronto um "é por causa da crise?".

"A Europa quis contar uma história em que Portugal seria um contraexemplo da Grécia. Os gregos teriam tido dificuldades por serem mal comportados. Já os portugueses, seguindo os conselhos dos professores, teriam voltado a crescer", compara Gomes. "Não é verdade. A dívida pública portuguesa não diminuiu. Isso é pura ficção, maior do que a das 'Mil e Uma Noites'."

No tapete voador de Gomes cabem, portanto, os construtores navais lançados ao desemprego pelo fechamento de um estaleiro no norte do país. Ou o jovem casal da periferia de Lisboa que, sem perspectivas de inserção profissional, se vê obrigado a buscar comida em uma instituição de caridade.

Há espaço também para o idílico (como no fragmento documental dedicado a criadores de tentilhões, pássaros cantores) e para o excêntrico, como no esquete que culmina com o julgamento de um galo por cacarejar nas madrugadas. Seus acusadores ignoram se tratar de um alerta sobre incêndios desatados por uma piromaníaca pré-adolescente de coração em brasa.

JUÍZA AOS PRANTOS

Outro tribunal acolhe talvez o auge das "Mil e Uma Noites": um caso simples de apropriação indevida de propriedade alheia ganha contornos barrocos e leva a juíza às lágrimas. É que rapidamente a desgraça humana se alastra: o banco de testemunhas e réus cresce de modo exponencial, abarcando funcionários públicos, vacas atropeladas, imigrantes chinesas, gênios, uma muda e um marmanjo priápico, entre outros.

Priápicos também são (ou ficam momentaneamente, sob o sortilégio de um mago africano) os líderes políticos e grão-duques do sistema financeiro reunidos para tratar das medidas de austeridade. No auge da volúpia, esquecerão a ortodoxia fiscal. Mas a excitação durará pouco.

Não vale aqui sacar do baú das "Noites" outras histórias, sob o risco de estragar a surpresa do espectador. Basta saber que há mercadoria para todos os gostos: drama social, comédia grotesca, faroeste, documentário, fantasia, musical...

O roteiro foi escrito ao longo dos 12 meses de filmagens, a partir de notícias recolhidas por um trio de jornalistas na imprensa de todo o país. Nesse intervalo, os atores ficavam "reservados" pela produção: poderiam ser convocados a qualquer momento.

Em seu quarto longa, Gomes assina seu trabalho mais político, mas parece rechaçar a etiqueta. "O lado íntimo das pessoas não costuma ter espaço nesse tipo de filme, que opera com estereótipos, reduz personagens à condição de símbolos da sociedade. É preciso incorporar o universo selvagem da imaginação", diz.

Diante do carretel de crises (econômicas, políticas, humanitárias, ambientais, íntimas), as anedotas que Gomes-Sherazade colhe junto a seus patrícios lembram a força anárquica e atemporal das histórias. Contra o irremediável, ele insiste: mais fortes são os poderes do cinema.

AS MIL E UMA NOITES
DIREÇÃO Miguel Gomes
PRODUÇÃO Portugal, França, Alemanha, Suíça, 2015, 16 anos
MOSTRA "O Inquieto": sáb. (24), às 13h30 (Esp; Itaú Frei Caneca), sáb. (31), às 21h45 (Esp; Itaú Frei Caneca), dom. (1º), às 15h (CineSesc), ter. (3), às 15h50 (Esp. Itaú Augusta); "O Desolado": sáb. (24), às 14h (CineSala), sáb. (31), às 16h30 (Reserva Cultural), dom. (1º), às 17h30 (CineSesc), seg. (2), às 19h30 (Esp. Itaú Frei Caneca); "O Encantado": sáb. (31), às 18h30 (Esp; Itaú Frei Caneca), dom. (1º), às 20h (CineSesc), seg. (2), às 19h50 (Esp. Itaú Augusta), ter. (3), às 16h (CineSala)

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editoria de arte/Folhapress
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