Folha de S. Paulo


Lourenço Mutarelli subverte a própria identidade em novo livro

Fabio Braga/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 08-10-2015: O escritor Lourenco Mutarelli, 51, fala sobre seu livro; O Grifo de Abdera. (Foto: Fabio Braga/Folhapress, ILUSTRADA)***EXCLUSIVO***.
O escritor Lourenco Mutarelli, 51, fala sobre seu mais recente romance, 'O Grifo de Abdera'

Lourenço Mutarelli não existe. Ele é uma invenção de Mauro e Paulo —o primeiro, roteirista; o outro, quadrinista— que contratam Raimundo para, em nome deles, dar entrevistas e aparecer em público. Raimundo, sujeito magro que leva os dias entornando cachaça, assumiu a personagem que nós conhecemos como Lourenço Mutarelli.

Em "O Grifo de Abdera", o escritor de 51 anos brinca com a própria identidade para narrar uma trama que, envolta em misticismo, causa estranhamento e curiosidade.

Um dos personagens é Oliver, ex-atleta decadente que perdeu mulher, emprego e dentes quando, de uma hora para outra, começou a agir como se fosse alguém diferente. Essa outra pessoa é Mauro, o narrador da obra. A vida de um influencia a do outro, e apenas uma moeda ancestral pode explicar essa ligação.

A moeda, aliás, existe. Lourenço Mutarelli —o verdadeiro, que também está em cartaz como o marido burguês do filme "Que Horas Ela Volta?"— transformou-a em anel e não o tira do dedo. "Comprei numa feira", diz o escritor, em entrevista à Folha na sexta-feira (9). "Tenho buscado essa coisa ancestral. Esses objetos me ajudam a encontrar concentração."

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Folha - Em oito anos você lançou cinco livros. Agora ficou cinco sem publicar romance algum. A que se deve esse hiato?
Lourenço Mutarelli - Meu editor disse, há um tempo, que achava melhor eu parar de publicar um pouco porque eu estava produzindo muito. A princípio eu achei isso estranho, mas experimentei. Fiquei três anos sem escrever e achei muito bom. Foi um conselho bem útil.

Não foi um bloqueio, então?
Não, o bloqueio foi antes disso. Foi com o livro do Amores Expressos [coleção da Companhia das Letras que enviou escritores a diversas cidades ao redor do mundo para que produzissem um romance]. Fiquei um ano bloqueado... Isso foi em 2007. Escrevi o livro de Nova York que não foi aprovado, não foi bem aceito. E agora estou de novo mexendo nele. É um livro muito trabalhoso e estou há dois anos trabalhando, aos poucos, quando consigo, porque acabo fazendo muita coisa e não tenho tempo de trabalhar direto na obra. Quero ver se acabo até o fim do ano. Não sei se consigo. Tenho três quartos dele prontos e é uma história diferente do que eu havia proposto no começo.

Por que o livro não foi aprovado?
Na verdade, eles não gostaram muito do livro e sugeriram muita alteração. Não foi recusado, mas queriam que eu alterasse muita coisa. Eu assenti no que eles sugeriram, mas aí eu não gostei do resultado. E como a editora tem muitos projetos para serem lançados, eu fui deixando ele de lado.

Como você aproveitou esse período afastado dos romances?
Eu usei esse tempo para fazer muito laboratório com os cadernos. Estava dando oficinas. Fiz algo com teatro...

E qual o saldo desse período longe da literatura?
Gostei muito do resultado desse livro ["O Grifo de Abdera"]. Entreguei o texto em janeiro do ano passado e não li mais. Agora que ele chegou impresso que eu li. Gostei.

Este livro traz uma mistura de quadrinho e romance...
É verdade. Todo livro meu é uma experimentação. Eu fui gerando esse quadrinho da mesma forma que meu personagem do livro: se apropriando de frames e gerando uma escrita automática. Minha ideia era não publicar o quadrinho, mas achei interessante encartar no livro como se fosse de um dos personagens.

Falando em personagem, o livro traz uma versão forjada de Lourenço Mutarelli: um bêbado que passa droga e, em troca de cachaça, aceita se tornar Lourenço Mutarelli. É alguém decadente. É a forma como você se vê?
Não, mas é algo curioso: é como eu me vejo em entrevistas filmadas. Fico muito constrangido em me ver e me ouvir falar. Eu acabo falando demais, me expondo demais, e isso me incomoda. O Mutarelli do livro é uma brincadeira catártica para entender quem eu sou visto de fora. E as pessoas mudam quando me conhecem como Lourenço e quando me conhecem como Mutarelli.

O que muda?
Tem muita lenda sobre mim que, meus amigos mais próximos, que convivem comigo, me contam. [As pessoas perguntam] "Mas ele fala? Ele não é muito estranho? Ele é agressivo?" Acho que isso tem a ver mais com meu começo, quando eu era mais fechado. E tem isso de ser tratado de maneira diferente quando apresentado como Lourenço e quando como Mutarelli. O tratamento vira uma bajulação, o que é muito incômodo. Não é porque eu tenho sobrenome que ela precisa me tratar bem. Uma vez, no bar com um amigo, fui apresentado por ele a outras três pessoas. Apresentado como Lourenço. Cara, para tudo o que eu falava os caras balançavam a cabeça, como se nada tivesse a ver com a conversa deles. Até o momento em que meu amigo mencionou "Mutarelli". Aí tudo o que eu falava era interessante. As mesmas pessoas que estavam me desprezando começaram a achar tudo interessante.

Isso é comum?
Não muito, mas acontece. Eu fui à Galeria do Rock comprar um disco [do grupo de rap 509-E] indicado por um amigo e o vendedor me tratou como um verme. Muito mal mesmo. Na hora de ir embora, eu disse: "Quem me mandou aqui foi o Ferréz e eu sou o Mutarelli". O cara mudou na hora, nem queria cobrar pelo disco. As pessoas julgam muito pela aparência e isso é muito ruim.

Falando em disco, suas produção tem muita interferência de música, não?
O quadrinho todo foi feito ao som de David Tibet, um grupo que ouço muito.Também ouvi Current93, que inclusive cito no livro. Ouvia o tempo todo "All The Pretty Little Horses: The Inmost Light", que é mais ambiente.

Current93 tem uma pegada mística
Totalmente.

Isso influenciou muito a história da mitologia contida em "O Grifo de Abdera"?
Eles têm um conhecimento muito produndo da base de Aleister Crowley [bruxo que dizia ser a 'Grande Besta 666']. As letras são cifradas, têm muitas formas de leitura, é algo muito profundo. E é algo que eu tenho achado muito fascinante. A moeda eu comprei numa feira e fiz a mesma coisa que o personagem do meu livro: pesquisei no Google. Na época encontrei umas três entradas sobre a moeda; hoje tem mais de 40 por minha causa. Algo que era muito desconhecido para mim agora tá ficando mais popular. Tenho buscado muito essa coisa ancestral. Esses objetos me ajudam. Eu busco o estado de concentração mais profundo.

Mas você não se julga religioso?
Não. Eu brinco que estou criando a minha religião, só para mim. É uma religião em formação, muito ligada à ancestralidade, a encontrar símbolos e fórmulas que acionam algo em mim e só em mim.

A moeda aciona o que em você?
O que busco, tanto na música quanto nesses elementos, é o estado de concentração mais profundo. Essas coisas me ajudar a ter foco. É como aqueles atletas que fazem aquele ponto no chão para se concentrar...

A gente falou sobre música e símbolos místicos, mas e literatura? "Sequelas" lembra um tanto de Baudelaire, enquanto "A Arte de Fazer Efeito sem Causa" tem um quê de William Burroughs. Qual é o seu referencial para "O Grifo de Abdera"?
Tem um peso do Kurt Vonnegut, um cara que o Antonio Prata me apresentou há uns quatro anos e fiquei chocado vi uma identidade grande entre nossos textos. Quando escrevi "O Cheiro do Ralo" eu não tinha lido Vonnegut e o texto é cadenciado pela frase "a vida é dura". E depois eu descobri "Café da Manhã dos Campeões", que tem coisas pontuando a vida na mesma pegada de "O Cheiro".

Já que estamos falando de escritores, o que você pensa sobre o mercado? "O Grifo de Abdera" tem uma crítica em relação aos ganhos de escritores, que ficam com 10% do valor de capa...
É meio um desabafo irônico porque é a realidade e não vai mudar. É muito difícil [manter] um trabalho em que a gente se entrega tanto e que não banca nada. Eu vivo de oficinas no SESC. Se não fosse o SESC eu passaria fome. É uma crítica verdadeira e uma ironia.

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Você cita no livro uma reportagem da Folha sobre bolsas recebidas por escritores. Qual é sua opinião sobre esse apoio estatal?
A brincadeira com a Folha também é uma crítica e uma ironia. Ninguém questiona esporte, por exemplo. Tem competição fora dos país e vai toda uma delegação. Aí quando vão escritores representar a cultura brasileira saem notícias sobre gasto de dinheiro público. A gente já não tem nada...

O GRIFO DE ABDERA
AUTOR Lourenço Mutarelli
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 44,90 (272 págs.)


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