Folha de S. Paulo


Aos 40 anos, dicionário 'Aurélio' é alvo de disputa judicial por coautoria

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Nada de festas ou homenagens. No ano em que comemora seus 40 anos, o dicionário "Aurélio" se vê em meio a um impasse judicial milionário. A causa acaba de chegar ao STF (Supremo Tribunal Federal).

Dois lexicógrafos da equipe de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1910""1989), autor que virou nome da obra, foram à Justiça pleitear a coautoria, pagamentos de royalties e percentual de direitos autorais.

Iniciado há 11 anos, esse imbróglio, antes de seguir para o STF, teve um desfecho no STJ (Superior Tribunal de Justiça) em 18 de agosto, quando a corte deu ganho de causa aos herdeiros de Aurélio e ao Grupo Positivo, atual editora da obra, negando o pedido dos dois assistentes: Joaquim Campelo, 84, e Elza Tavares (1936""2010), representada por sua sobrinha, Ana Tavares.

Campelo e Tavares figuraram no expediente do dicionário "Aurélio" ao lado das lexicógrafas Margarida dos Anjos (1933""2009) e Marina Baird, viúva de Aurélio, de 1975 a junho de 2003 (28 anos) –período em que a obra era publicada pela Nova Fronteira. "Chegamos a vender mais de 15 milhões de exemplares somando as versões em papel e digital", conta Carlos Augusto Lacerda, publisher da editora até 2006.

Fabio Braga/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 25-09-2015: XXXXXXX. PRODUCAO DICIONARIO AURELIO (Foto: Fabio Braga/Folhapress, ILUSTRADA)***EXCLUSIVO***.
Detalhe de edição de 1999 do "Aurélio"

No fim de 2003, quando o dicionário foi para o Grupo Positivo por R$ 4 milhões em luvas (direitos de publicação), os herdeiros tiraram os nomes de Tavares e Campelo do expediente e suspenderam o pagamento de direitos autorais. A dupla entrou na Justiça, e exemplares foram retidos. A família Ferreira recuou. Os nomes foram reincluídos na obra. Já os repasses bancários cessaram. Procurada, a família Ferreira não quis comentar a decisão.

TESTEMUNHA

Pupilo do professor Aurélio a partir dos anos 50, Campelo acompanhou a gênese do dicionário e os quiproquós para a obra ir ao prelo. "E foram muitos, até dinheiro coloquei nesse projeto", diz ele.

Morando em Brasília, onde auxiliou José Sarney na revisão de seus discursos e assumiu a vice-presidência do Conselho Editorial do Senado, ele repete: "Sou o coautor da obra. Essa decisão é uma injustiça".

A escritora Nélida Piñon, 78, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), saiu em defesa de Campelo e Tavares. "Eles fizeram vários verbetes para o dicionário. Eu vi!", frisa a escritora, que era próxima de Elza e foi testemunha no processo.

"Considero lastimável esse caso. Um escândalo. O direito autoral é sagrado para um escritor", avalia.

Em sua defesa, o Grupo Positivo concentra seus argumentos no que diz a lei 5.988/73. "Ela não considera colaborador quem simplesmente auxiliou o autor na produção da obra intelectual, revendo-a, atualizando-a."

Alan Marques/Folhapress
BRASÍLIA, DF, BRASIL, 11.09.2015. Joaquim Campelo, 84, que disputa na Justiça o royaltie de receber direitos pelas vendas do dicionário Aurélio. A história é assim: o Aurélio, que chega aos 40 anos, vive um impasse judicial milionário que acaba de chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF). Dois lexicógrafos da equipe de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1910 - 1989), autor que virou nome da obra, foram à Justiça pleitear a co-autoria, pagamentos de royalties e percentual de direitos autorais. *** ESPECIAL *** EXCLUSIVO *** (FOTO Alan Marques/ Folhapress) PODER
Joaquim Campelo, 84, assistente de Aurélio Buarque na criação e edição do dicionário

Ao longo do processo, o grupo recorreu ao registro da obra na Biblioteca Nacional, no qual consta o professor Aurélio como autor e o nome deles como assistentes. Levou ainda manuscritos, nos quais há a confirmação de que a palavra final sobre a redação dos verbetes na obra era do professor Aurélio.

No acórdão, o STJ também cita a atual Lei de Direitos Autorais (nº 9.610/98), que deixou de regular a obra "em colaboração" para obra "em coautoria". E elucida que ela serve para fatos ocorridos a partir de 1998.

A defesa de Campelo se concentra na "Escritura de Cessão de Direitos Hereditários", feita pelos filhos de Aurélio no inventário. "Não há qualquer menção específica aos direitos autorais sobre o dicionário, sendo que a cessão se deu de forma geral", diz a advogada Cristiane Furquim Meyer. "O documento é usado pela viúva como suposta prova de que ela seria a única titular dos direitos sobre o dicionário".

Dos Anjos e Tavares morreram ao longo do processo. Marina Baird Ferreira morreu no último domingo (27).

Campelo, nas horas livres e a sós, escreve o seu dicionário sem pressa. "É a minha vida, minha sina."

FINANCIADO POR 'O EXORCISTA'

"Graças ao 'Exorcista' hoje temos o dicionário Aurélio", diz Joaquim Campelo, colaborador da obra. Ele conta que por dois anos ofereceu o dicionário a várias editoras. "Era não atrás de não."

Escrito por William Peter Blatty, o best-seller de suspense rendeu um bom dinheiro à Nova Fronteira na década de 70. E ela tratou de investir tudo na compra de imensos cilindros de papel-bíblia, dando vida ao "Aurélio".

Fez tanto sucesso que pouca gente se deu conta de que a obra trazia dezenas de erros de português. "Aleluia aparecia com acento no u", conta Campelo. Mas, antes de a segunda reimpressão (já com os ajustes) chegar ao prelo, o "Aurélio" nadava de braçadas no mercado editorial. Desbancou, inclusive, o posto do "Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa".

Soberana nas livrarias desde 1938, essa obra era editada por Hildebrando de Lima junto a um elenco formidável de colaboradores, como Otto Maria Carpeaux e Manuel Bandeira. "Aurélio foi chamado para substituir Bandeira", diz Campelo. Míope, o poeta pediu para sair. "Sofria para ler as letras miúdas das páginas mesmo com óculos."

Eduardo Knapp/Folhapress
ILUSTRADA. Literatura vai para as telas.Livros que viraram filmes. Foto do livro O Exorcista, de William Peter Blatty(Sao Paulo, SP.24.05.2006. 17h. Foto Eduardo Knapp/Folha Imagem. Digital)
Edição do livro "O Exorcista", de William Peter Blatty, da Nova Fronteira

Assim o professor Aurélio entrou para o universo dos dicionários. Revisou inúmeras edições e por lá permaneceu por anos. E, ao se desligar desse projeto nos anos 60, aceitou o convite da revista "O Cruzeiro" para editar um dicionário, encartado em fascículos. Campelo, seu ex-aluno e já amigo de todas as horas, faz sua estreia como assistente.

A proposta pioneira morre na praia. As experiências, no entanto, animam Aurélio, Campelo, Margarida dos Anjos, Elza Tavares e Marina Baird (já casada com Aurélio) a criar em 1968 um dicionário.

Como bancar um dicionário seria algo impossível, Campelo recorreu a amigos bem de vida para começar.

A equipe lidera a edição de um dicionário com um mix de verbetes do clássico ao brasileirismo captados em caminhadas no centro do Rio e "anotados em papeizinhos, aqueles de boteco", relembra Campelo, que os incorporava ao dicionário.

Tudo ia bem até 2001, quando entra em cena o "Houaiss". "A primeira edição ficou no primeiro lugar da lista de best-sellers por meses", relembra Mauro Villar, 76, diretor do Instituto Antônio Houaiss e coautor do dicionário do mestre Antônio Houaiss (1915-1999).

"Aurélio" e "Houaiss" já não estão no ranking há tempos. Ambos concentram novas investidas em versões on-line de seus conteúdos (leia ao lado). Também não são campeões de vendas nas licitações públicas do governo federal.

A mais recente compra de dicionários no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), realizada em 2012 movimentando mais de R$ 93 milhões, foi dividida entre as editoras de Aurélio, Houaiss e outras dez empresas.

CONCORRÊNCIA PRIORIZA VERSÕES DIGITAIS

Bytes, internet, banco de dados e senha. Se por anos os editores de dicionários ficavam de olho no preço do papel, no fluxo da gráfica e nos macetes dos distribuidores, hoje suas atenções se voltam ao universo digital.

"Aurélio" e "Houaiss" têm em comum as atenções dadas às suas versões on-line. E guardam a sete chaves os dados dessas investidas.

Enquanto o Grupo Positivo oferece em livraria ou nas suas redes de ensino o "Aurélio" na versão impressa junto à "chave de acesso digital", que dá direito à versão eletrônica da obra (bem mais completa), o "Houaiss" é mais radical.

Seguindo caminho trilhado por grandes dicionários internacionais (como "Macmillan" e "Pons"), o "Houaiss" deixou de ser impresso. "Ele é disponível apenas on-line e restrito a assinantes do UOL [portal do Grupo Folha, que edita a Folha]", conta Mauro Villar, diretor do Instituto Antônio Houaiss e coautor do dicionário homônimo.

A entidade recebe um valor fixo para dispor o conteúdo nessa plataforma.

Além de garantir mais agilidade à edição da obra e driblar os custos com gráfica e distribuição, a mudança também sinaliza uma tendência.

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PALAVRA POR PALAVRA Breve história dos dicionários no país

1789. É lançado o dicionário de Antônio de Morais Silva, um marco da lexicografia em língua portuguesa

1938. Nasce o 'Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa'

1941. Surge o 'Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa', de Laudelino Ferreira

1975. Sai a primeira edição do 'Aurélio'

1991. É lançado o 'Aurélio' para computador; o acesso a mais de 120 mil verbetes é feito por meio de seis disquetes

2001. É lançado no mercado o 'Houaiss', do lexicógrafo Antônio Houaiss

2002. O 'Aurélio' passa a integrar uma plataforma digital, remota e acessível por senha

2015. O 'Aurélio' faz 40 anos com 450 mil verbetes, definições e locuções


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