Folha de S. Paulo


Wando ganhará filme e 'ônibus-museu' para abrigar acervo de 17 mil calcinhas

Anos antes da safra de "mulheres frutas", Wando já colhia calcinhas fio dental com a parte da frente em formato de caju, uva e morango. Guardadas num pote de plástico verde em formato de maçã, são uma gota no oceano de 17 mil peças íntimas, algumas cuecas inclusas -uma delas com a mensagem a canetinha: "Amigos gays de Wandinho".

São presentes de fãs colecionados pelo cantor até sua morte, aos 66 anos, em 2012, após infartar. Parte desse legado, preservado em caixas e separado por cores, rodará o Brasil num museu itinerante dentro de um ônibus.

O projeto está na fase de captação de recursos e deve entrar na Lei Rouanet. Sua idealizadora, a filha Gabrielle Burcci, 41, afirma que o acervo, tal qual uma calçola de vovó, abrange "bastante coisa". Afinal, cabe muito mais na biografia de Wanderley Alves dos Reis do que o estigma de brega e as lingeries que acolchoaram seus palcos.

Para mostrar novas facetas desse velho conhecido do cancioneiro popular, Gabrielle produz um documentário sobre a saga do pai, "Vulgar e Comum É Não Morrer de Amor - A História de um Romântico Brasileiro e Sem-Vergonha", com direção de Darcy Bürger (de "Clara", sobre Clara Nunes).

O ponto de partida do filme será Cajuri, zona rural mineira onde nasceu o filho de uma mulher morta cedo, também ao infartar, e de um comerciante boêmio e mal sucedido. "Aquele típico cara que saía na noite de terno branco", diz a filha.

A dupla também prepara um tributo para Wando, que viraria septuagenário nesta sexta (2). Até o fim do ano, decidirão gravadora e convidados. "Não sabemos se chamamos amigos antigos ou a nova geração, como Maria Gadú", diz Darcy.

O Acervo de Wando

CHORA CORAÇÃO

Wando foi feirante, sambista e militante das Diretas Já que, quando Tancredo Neves morreu, fez para a viúva Risoleta "Chora Coração".

Nos mesmos anos 1980, escreveu canções com Chico Anysio ("Safada", sobre querer a mulher "falando bobagem, rodando a baiana") e Pelé ("Palco de Amor", onde a "fera no cio explode no grito"). Gabrielle lembra que o jogador frequentava a casa deles e levava Xuxa, então sua namorada, nos shows do amigo.

Assinou letras espevitadas para o Brasil ditatorial das eleições indiretas, como "Presidente da Favela": "Que sirva de exemplo/ a todas as favelas brasileiras/ arranjem um presidente de boas maneiras".

Outra ousadia: em 1978, gravou "Emoções", sobre dois garotos "tão vadios de tanto querer" que se amavam "suavemente e tão docemente".

"Ele, um emérito heterossexual, me disse que leu um livro no qual se descobria, no fim, que o amor era entre homens. Isso o teria inspirado", diz Rodrigo Faour, autor de "A História Sexual da MPB" (Record).

FOGO E PAIXÃO

O Wando que amava a mulher "raio, estrela e luar" do clássico "Fogo e Paixão" é também o Wando que começou a carreira dando samba. "Seus três primeiros discos foram do gênero. Algo meio induzido porque as gravadoras tinham aquela visão: se é mestiço, de 'black power', só podia cantar samba, que nem com o Wilson Simonal", afirma Gabrielle.

"Mas, como tinha o samba de raiz, ele queria ser romântico de raiz", ela continua. Meta alcançada em álbuns oitentistas como "Vulgar e Comum É Não Morrer de Amor" e "Ui-Wando de Paixão". Em 1987, para embalar o par Vera Fischer e Felipe Camargo na novela "Mandala" (Globo), compôs "Eu Já Tirei a Sua Roupa".

Enquanto se despia de pudores, Wando era rotulado como cafona pela crítica musical. "No início meu pai ficou muito abalado. As pessoas o associavam a mau gosto. Mas aí ele passou a dizer: 'Se ser brega é vender 10 milhões de discos, então deixa pra lá'."

Mesmo calejado, Wando ainda se magoava com amostras "de classismo", segundo Gabrielle. Foi assim quando a rádio MPB FM se recusou a tocar seu acústico de 2002 (em que canta de Vinicius de Moraes a Djavan).

Ameaçou processar Paula Lavigne. Em 2009, a "Veja" questionou a produtora sobre alegações de que ela só pedia altos cachês, quando atriz, por ser mulher de Caetano Veloso. "Claro, estão achando que sou mulher do Wando?", devolveu com ironia.

Procurada pela Folha, a rádio MPB não quis se pronunciar. Já Lavigne diz: "Sou fã dele, meu iá-iá, meu iô-iô, pelo amor de Deus. Foi uma piada de mau gosto. Pedi desculpas na época".

MULHERADA

Rose Marie, a primeira mulher e mãe de Gabrielle, conheceu um Wando "magricelinho" pré-fama, na boate Balacobaco (São Paulo). Na época ele usava gravatas borboleta para "dar uma cor" aos dois únicos paletós. "Achou ele horroroso, mas acabou se encantando", conta a filha.

Não foi a única. Suspeita-se que o cantor tenha tido dois filhos fora do casamento (um já morto), além da caçula Maria, 8, com sua última mulher.

Seu cacife com o mulherio levou a socialite Narcisa Tamborindeguy a contratá-lo para comícios da irmã Alice, candidata à prefeita de São Gonçalo pelo PP-RJ, em 2012. Narcisa lembra que "ele ia num ônibus todo divertido", com luz neon e varal de calcinhas.

Para Gabrielle, o museu sobre rodas retoma o Wando que leva alegria "às pessoas no interior, que eram seu grande público". O plano é que o acervo circule por dois anos e depois migre para um espaço físico. Ela convidaria herdeiros para expor o legado de outros populares, como Reginaldo Rossi (1944-2013) e Nelson Ned (1947-2014), no ônibus.

"As pessoas passam, e o Brasil não lembra", diz a primogênita de Wando, que no fim da vida se agarrava a um provérbio bíblico que diz assim: "Melhor é o fim das coisas do que o princípio delas".


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