Folha de S. Paulo


Artistas protestam contra obras de museus nos Emirados Árabes

Na imensidão faiscante da ilha de Saadiyat, um chapadão de areia rodeado pelo mar azul turquesa à sombra dos arranha-céus de Abu Dhabi, o mais novo Guggenheim do planeta ainda nem aparece, mas a polêmica que provoca desde que começou a ser construído ali ultrapassa suas futuras dimensões faraônicas.

Mais avançado na construção, o Louvre da capital dos Emirados Árabes Unidos, desenhado pelo francês Jean Nouvel, já desponta no horizonte, sua cúpula metálica brilhando no sol do deserto.

Instalando uma das quase 8.000 estrelas de ferro que adornam a cobertura, um operário paquistanês morreu em pleno canteiro de obras há dois meses em circunstâncias não esclarecidas. Ele não foi o primeiro a perder a vida na onda de construções que tentam transformar esse descampado em meca da cultura.

Mas as violações de leis trabalhistas já comprovadas na ilha -operários, em geral indianos, paquistaneses e nepaleses, têm seus passaportes confiscados e são extorquidos para pagar taxas cobradas por recrutadores- vêm enfurecendo não só organizações de defesa dos direitos humanos, mas também artistas visuais.

Walid Raad é um deles. O libanês, que tem obras na coleção do Guggenheim e foi uma das estrelas da última Bienal de São Paulo, liderou há quatro anos o primeiro manifesto contra os abusos do museu em solo árabe, pedindo que artistas boicotassem a instituição e se recusassem a vender trabalhos para compor o acervo.

Ele também está entre os nomes que integram o coletivo Gulf Labor, grupo com mais de 40 artistas do mundo todo que vem publicando uma série de relatórios alarmantes -o último deles saiu neste mês- sobre as condições dos trabalhadores em Saadiyat.

Embora a coalizão de Raad tenha passado os últimos anos chamando a atenção do meio artístico para o drama desses operários, a temperatura aumentou quando a Bienal de Veneza, em cartaz até novembro na cidade italiana, escalou o Gulf Labor como um de seus destaques.

No Arsenale, uma das alas principais da mostra, está um enorme cartaz do grupo listando o que entendem como desvios de conduta na construção dos museus árabes, uma operação orçada em quase R$ 400 bilhões no total.

Em maio, durante a abertura da Bienal, com Veneza coalhada de VIPs, cerca de 50 artistas levaram ao terraço do Guggenheim italiano faixas pedindo respeito aos direitos dos trabalhadores.

BARRADOS NA ILHA

Mesmo longe de Abu Dhabi, o protesto não passou em branco nos Emirados. Um mês depois, em junho, Raad, que tinha uma visita marcada ao alojamento dos operários na obra do museu na ilha de Saadiyat, foi barrado no aeroporto tentando entrar no país.

"Fui tratado com respeito, mas não me disseram o que houve", diz Raad. "Só ouvi um policial na outra sala dizendo que eu estava sendo vetado por 'motivos de segurança'."

Outros artistas, estudiosos e jornalistas que tentaram chegar perto dos canteiros de obra também foram barrados pelo governo dos Emirados, despertando manifestações de apoio do Conselho Internacional de Museus, da Unesco, e até do próprio Guggenheim.

"Levamos esse assunto muito a sério e tentamos acionar canais diplomáticos para evitar restrições ao trânsito dos integrantes do Gulf Labor", diz Tina Vaz, uma porta-voz do museu em Nova York, sem especificar que canais seriam esses. "Não podemos interferir nos controles migratórios, mas estamos em contato com esses artistas."

Raad reconhece que esteve, junto de outros membros do Gulf Labor, em reuniões com dirigentes do museu, mas diz que foram só cosméticos os avanços prometidos pelo Guggenheim depois que auditorias independentes, entre elas uma da PricewaterhouseCoopers, comprovou violações de direitos humanos nas obras.

"Esperamos há cinco anos por mudanças concretas, de acordo com as necessidades dos trabalhadores", diz o artista. "Não cobramos avanços que só correspondem à fantasia dos empregadores sobre os desejos de seus operários."

Enquanto isso, o Guggenheim tenta driblar o boicote para criar uma coleção condizente com o lugar do planeta onde está fincando raízes, ou seja, não pode ignorar artistas árabes mesmo com a grita contra seus planos na região.

Em Abu Dhabi, onde instalou um pavilhão provisório para mostrar o que já comprou para a futura filial, o museu exibe obras inspiradas por efeitos luminosos. "Escolhemos o tema porque é universal", diz Verena Formanek, diretora da coleção local. "Aqui tudo é muito complicado."


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