Folha de S. Paulo


Controle de advogada sobre Harper Lee causa polêmica na cidade da autora

Faz pouco mais de um mês que foi lançado "Go Set a Watchman", o muito aguardado segundo romance de Harper Lee. O livro foi a sensação editorial do ano, mas o mundo literário em geral seguiu adiante, com foco nos novos lançamentos para o outono e inverno.

Mas em Monroeville, a cidade natal de Lee, os efeitos da publicação de "Go Set a Watchman" persistem, como os detritos deixados por uma feira rural que já se encerrou.

A vida está retornando ao seu ritmo lento habitual, e muitos moradores estão se ajustando a uma nova ordem das coisas no que tange a Lee —uma ordem que está sob o firme controle de Tonja Carter.

BBC
Lançamento de 'livro mais aguardado do ano' faz livrarias ficarem abertas de madrugadaCom mesmos personagens de 'O Sol É Para Todos', 'Go Set a Watchman', de Harper Lee, foi lançado simultaneamente em 70 países.
A autora Harper Lee, de 'O Sol É Para Todos' e do best-seller 'Go Set a Watchman', lançado simultaneamente em 70 países em 2015

Carter é a advogada de Lee, e ao longo dos últimos anos consolidou controle incomum sobre os negócios da escritora. Nos últimos meses, ela estendeu seu alcance, às vezes até aos menores detalhes.

Cerca de sete semanas atrás, por exemplo, no dia de um almoço na cidade para celebrar a publicação de "Go Set a Watchman", Carter foi informada sobre um livro de receitas, "To Fill a Mockingbird" (como "rechear" um pássaro, uma brincadeira com o título original de "O Sol é Para Todos"), que estava à venda no museu que ocupa o velho tribunal localizado no centro da cidade.

O tribunal serve de cenário a "O Sol é Para Todos", clássico de Lee, publicado em 1960.

Dois anos antes, Lee havia processado o museu por vender produtos demais com sua marca, "Mockingbird". Na opinião de Carter, o livro de culinária violava o acordo extrajudicial que encerrou o caso.

Por isso, ela apresentou queixa a Greg Norris, um juiz do condado de Monroe e uma das mais poderosas autoridades locais. Na mesma tarde, Norris foi ao museu e recolheu as 282 cópias do livro em um carrinho de mão, e as entregou a Carter em seu escritório.

"Não quero mais processos", explicou mais tarde Norris, presidente da comissão do condado de Norris. "Assim, decidi removê-los, por garantia."

De muitas maneiras, grandes e pequenas, Carter, 50, está dando forma ao legado de uma das mais reverenciadas escritoras dos Estados Unidos.

Ela é advogada, porta-voz e curadora do patrimônio de Lee. Tem procuração de Lee, 89, que está enferma, para cuidar de todos os seus negócios, e é comissária de um fundo estabelecido pela escritora por volta de 2011. Carter diz ter sido ela que encontrou o manuscrito de "Go Set a Watchman", há muito perdido, e foi ela que negociou o acordo com a editora HarperCollins para publicação. E recentemente, ela assumiu a direção de uma organização sem fins lucrativos criada por Lee que tomou o controle de uma peça baseada em "O Sol É para Todos", encenada todos os anos no antigo tribunal de Monroeville.

"É um nível de envolvimento bastante incomum", diz Sallie Randolph, advogada que representa escritores.

O controle de Carter sobre os negócios de Lee se tornou uma questão polarizadora que pende sobre esta cidade de 6,3 mil moradores. Elogiada por alguns como leal protetora de uma amiga envelhecida, Carter é criticada por outros como uma pessoa malévola que exerce influência demasiada sobre uma cliente vulnerável.

Os críticos a acusam de pressionar Lee, conhecida pelo apelido Nelle, a publicar "Go Set a Watchman". Acreditam que Carter a tenha encorajado a processar o museu. Incomodam-se com a lista de visitantes cada vez menor que ela autoriza a terem, contato com Lee na casa de repouso em que esta vive. Suspeitam que ela tenha influenciado a decisão da comissão do condado, este ano, de demitir a diretora executiva do Monroe County Heritage Museum, cujo relacionamento com Carter era tenso.

"Para mim, Tonja é abrasiva e assustadora, e desnecessariamente", disse Kahryin Taylor, que fez parte do conselho do museu de 2008 até o ano passado. "Tonja é uma ruptura com o passado, quando Alice e Nelle lidavam com as coisas de modo diferente", disse Taylor, falando sobre a irmã mais velha de Lee.

Há quem defenda as ações de Carter, e sua motivação.

"Houve muita conversa negativa sobre Tonja em Monroeville, no sentido de que ela era uma espécie de figura maquiavélica encarregada de uma escritora idosa e enferma e que estava sendo manipulada", disse Connie Baggett, amiga de Carter. "Isso prejudicou seus negócios e sua reputação na cidade. Mas tudo que Tonja fez foi tentar defender os interesses de Nelle Harper Lee."

O restaurante de Carter, Prop and Gavel, no qual ela é sócia de seu marido Patrick, ficou fechado para reforma por um ano, e sofre boicote informal dos moradores da cidade, irritados com o processo contra o museu. O restaurante, que diz ter ficado fechado devido a uma reforma no edifício ao lado, foi reinaugurado recentemente.

Pete Black, que operava uma fábrica de celulose local e é amigo próximo do casal Carter, lamenta o rancor que acompanhou o momento de brilho de Monroeville. "Não me lembro de algo dessa magnitude, algo tão divisivo, acontecendo nessa cidade", ele disse. "É uma vergonha. Isso exibiu ao mundo externo que somos uma cidade dividida e malévola, quando não somos."

Carter não respondeu a perguntas ou a um pedido de entrevista. Investigadores estaduais revisaram se Lee havia sido pressionada a autorizar a publicação de "Go Set a Watchman", e decidiram que não.

A conexão entre Carter e a família Lee surgiu há 30 anos. Criada no Ohio, Carter se mudou na adolescência para o Alabama, quando seu pai conseguiu emprego numa fábrica de celulose.

Na metade dos anos 80, Carter foi contratada como secretária pelo escritório de direito em que Alice Lee trabalhava. Alice se tornou sua mentora, encorajando-a a estudar Direito na Universidade do Alabama. Carter se formou em 2006 e pouco depois foi admitida como sócia no escritório, hoje conhecido como Barnett, Bugg, Lee & Carter.

Com o declínio na saúde de Alice —que morreu no ano passado aos 103 anos—, Carter assumiu mais responsabilidade pelo escritório e no cuidado de Harper Lee.

Joe Raedle - 14.jul.2015/AFP
CORAL GABLES, FL - JULY 14: The newly released book authored by Harper Lee, 'Go Set a Watchman', is seen on sale at the Books and Books store on July 14, 2015 in Coral Gables, Florida. The book went on sale today and is Lee's first book since she released her classic, 'To Kill A Mockingbird' ,55 years ago. Joe Raedle/Getty Images/AFP == FOR NEWSPAPERS, INTERNET, TELCOS & TELEVISION USE ONLY ==
Exemplares de 'Go Set A Watchman', de Harper Lee, lançado em julho de 2015

Foi em seu papel como advogada de Lee que Carter diz ter encontrado o manuscrito de "Go Set a Watchman", ao vasculhar uma caixa de depósito bancária de Lee em agosto passado. Há um relato conflitante de que o manuscrito teria sido encontrado anos antes por um avaliador da casa de leilões Sotheby's. Carter contesta essa versão dos acontecimentos.

Ela reconhece, porém, jamais ter preparado um inventário detalhado dos arquivos de Lee. Alguns estudiosos se espantaram com uma declaração de Carter ao "Wall Street Journal", no mês passado, de que foi só em julho, em pelo menos sua terceira visita à caixa de depósito, que ela localizou o manuscrito original de "O Sol é Para Todos", um documento cujo valor provavelmente excede US$ 1 milhão. Durante a mesma visita, ela disse ter encontrado páginas do que pode ser um terceiro romance de Lee.

"Não creio que o acervo literário de Lee esteja sendo bem administrado", disse Charles Shields, autor de "Mockingbird: A Portrait of Harper Lee".

Não se sabe quando dinheiro Carter ganha trabalhando para Lee ou em sua capacidade mais ampla como advogada especialista em direito familiar e espólios; ela também lida com alguns casos em outras áreas. Alguns advogados que operam como agentes literários recebem comissão de 15% sobre o adiantamento pago por um livro.

Carter agora conta com um consultor externo para ajudá-la a lidar com as muitas questões de mídia e negócios que enfrenta. Steven Hofman, cuja lista de clientes já incluiu o Citicorp e o "Washington Post", foi contratado para representar Lee mais ou menos na época do lançamento de "Go Set a Watchman".

Em Monroeville, o relacionamento desgastado entre Carter e o museu é o que causa mais estranheza. O processo de 2013 chegou até a atrair a atenção do governador Robert Bentley, do Alabama, em dado momento, de acordo com o industrial e filantropo George Landegger, 78, amigo de Patrick Carter.

Landegger, que se declarou culpado este ano de ocultar dinheiro em contas bancárias na Suíça e foi sentenciado a dois meses de prisão, declarou em entrevista que havia sido convidado pelo governador a intermediar um acordo quanto à disputa. "Todo mundo ficava me perguntando que diabos estava acontecendo em Monroeville", disse Landergger, que está tentando estimular o investimento na região.

Landergger disse que aconselhou o conselho do museu a desistir da briga. "Disse que eles haviam tentado agarrar um tigre pela cauda", ele contou. O acordo foi assinado no final do ano passado.

Como parte dos termos, uma empresa de auditoria pode examinar as contas da loja de presentes para determinar se Lee está recebendo o quinhão devido sobre produtos como camisetas e canecas. Norris —o homem que retirou os livros de culinária (ele disse que eram 53, mas o recibo que assinou menciona 282)— afirmou que não estava claro de que maneira o museu seria reembolsado pelos livros.

Agora, a instituição enfrenta ameaça diferente. A Dramatic Publishing, detentora dos direitos teatrais sobre a versão de "O Sol É Para Todos" encenada lá, não renovou os direitos do museu para produzir a peça, que a instituição encena anualmente há 26 anos com um elenco de voluntários.

A Dramatic Publishing licenciou a produção para uma nova organização sem fins lucrativos, a Mockingbird Company, criada por Lee no segundo trimestre. Ela é presidente e diretora da organização, e Carter é vice-presidente.

A peça será encenada no museu, ao qual a organização planeja pagar aluguel. Mas o restante da renda dos ingressos será distribuída em doações a organizações assistenciais do Alabama. O museu derivava cerca de metade de sua receita operacional da peça.

"Não sei como eles sobreviverão", disse Francine Grider, ex-contadora do museu.

Grider se demitiu em protesto no mês passado, depois que a comissão do condado demitiu Stephanie Rogers, a diretora executiva do museu. Tanto Rogers quanto Grider disseram ter sido informadas de que o marido de Carter, que entrou para o conselho do museu alguns meses atrás, havia feito lobby pela demissão de Rogers.
Norris, que apontou Carter para o conselho, disse que ela nunca havia pedido que ele demitisse Rogers. "Nunca ouvi isso dela", ele afirma.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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