Folha de S. Paulo


Julgamento no STF pode legalizar obras de arte feitas com drogas

Minutos antes de entrar no avião em Londres, Lourival Cuquinha foi ao banheiro e jogou na privada as pedras de haxixe que traria ao Brasil, filmando o momento da descarga. Ele já tinha sido parado na fronteira da Suíça com a França e estava com medo de ser preso em flagrante no aeroporto.

Não, Cuquinha não é um traficante internacional. A droga espetada na ponta de uma agulha formando o pingente de um colar é uma obra que o artista já mostrou em Paris, Rio, Alemanha e Holanda. Em cada ocasião, o público da galeria era convidado a fumar as pedras de haxixe numa espécie de performance coletiva.

"Minha questão era saber até onde isso se isenta porque é arte ou não se isenta porque é tráfico", diz Cuquinha. "Teve gente que comprou para fumar e gente que comprou para guardar como uma obra. É arte e é crime."

Mas em breve poderá não ser crime. Dependendo do resultado de um julgamento nesta semana no Supremo Tribunal Federal, que pode descriminalizar o porte de entorpecentes para consumo próprio no país, trabalhos como o de Cuquinha e outros artistas que usam drogas em peças no limiar da ilegalidade podem sair das margens da lei.

"Esse assunto fica numa zona penumbrosa", diz o jurista Carlos Ayres Britto, ex-ministro do Supremo que já votou pela liberação da marcha da maconha. "Se o ambiente for artístico, esses atos já são protegidos pela Constituição como liberdade de expressão, mas, se o vigor da lei for amenizado, caminhamos ainda para um novo visual das coisas."

Enquadradas por esse novo entendimento jurídico, obras que já deram dor de cabeça e ressacas violentas a galerias e museus no país perderiam seu potencial de polêmica. A nova lei também poderia esvaziar o significado de alguns clássicos da história da arte brasileira.

Nos anos 1970, Hélio Oiticica e Neville d'Almeida, por exemplo, usaram cocaína para contornar traços do rosto de celebridades como Marilyn Monroe e Jimi Hendrix em retratos depois projetados como slides na galeria –no auge da ditadura, não levaram a droga ao museu, mas só a sua imagem já causou escândalo.

Em exibição permanente no Instituto Inhotim, megamuseu nos arredores de Belo Horizonte, essas instalações chamadas "Cosmococas" seriam agora mais um testemunho da história do que ato transgressor.

Se o Supremo de fato descriminalizar o porte de drogas para uso pessoal, Cuquinha diz que voltaria a fazer a performance que batizou "Boca de Fumo" só como uma celebração da mudança da lei. "Esse trabalho tem um fetiche", diz o artista. "Mas fazer algo legal que já foi ilegal perde um pouco do seu sentido."

Outra ação que seria domesticada pela lei repaginada é o hábito do artista Marcelo Cidade de chamar amigos para fumar um baseado em vernissages. Uma vez apagado o cigarro, ele colava a ponta na parede do museu e escrevia "Registro de Performance".

"Era um acontecimento. Não tinha a intenção de questionar a liberação da maconha", conta Cidade. "Tinha mais a ver com afirmar uma ideia de liberdade."

Descriminalização da maconha

Mas museus e colecionadores nunca se deram a liberdade de comprar a performance por receio de violar a lei. Cidade chegou a negociar o trabalho com uma instituição francesa, exigindo que cada vez que fosse mostrada a peça alguém teria que de fato fumar maconha dentro do espaço.

Segundo especialistas, uma fotografia das rodinhas de fumo de Cidade não causaria qualquer atrito com a lei, mesmo com a legislação atual. O problema é acender um baseado na galeria, que só valeria como um "ato artístico".

"Não importa que só o artista considere aquilo uma obra de arte", diz o procurador Wellington César Lima e Silva. "É fundamental que a performance seja compreendida como algo de valor artístico pela comunidade, caso contrário é razoável que autoridades entendam que aquilo passou de provocação e virou transgressão dos valores legais."

Isso, é claro, caso a lei fique como está, ou seja, prevendo prisão para quem usa entorpecentes. Outro trabalho famoso na história da arte com drogas, no entanto, ainda divide a opinião de juristas.

VASO

Há três anos, o artista Theo Craveiro mostrou uma planta real de maconha na galeria Mendes Wood DM, em São Paulo. A bela folhagem da erva seduziu tanto a galerista Luisa Strina que ela estava disposta a levar o vaso para casa, mas teve medo. Na ocasião, os donos da galeria também acharam melhor não vender, mas não comentam o caso.

"Não comprei porque pensei que ia dar problema. Algum vizinho poderia ver e me denunciar", conta Strina. "Ia ser presa por uma bobagem."

No entender do jurista Walter Maierovitch, Strina poderia mesmo ser enquadrada como criminosa, lembrando que ao longo da história plantas de maconha eram vendidas como suposto objeto de decoração. "Isso durante muito tempo foi visto como forma de burlar a lei. O passo evolutivo que podemos dar agora no Brasil é só uma permissão para uso próprio."

Outros estudiosos, no entanto, dizem que o abrandamento da lei antidrogas poderia até salvar um trabalho como o de Craveiro –a planta, segundo o artista, já não existe–, caso o contexto seja sempre o de uma mostra artística.

"Era uma situação que só fazia sentido dentro da galeria", diz Craveiro. "É uma planta muito bonita proibida de existir. Tentei legitimar essa existência na arte. Não sabia qual seria a repercussão e isso sempre foi parte da graça."


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