Folha de S. Paulo


'Daily Show com Jon Stewart' despede-se hoje e abre vácuo na TV americana

Em uma pequena bancada, Steve Carell, que depois brilharia em "The Office", e Stephen Colbert, cujo futuro talk show satírico ganharia relevância tamanha a ponto de quase jogá-lo na corrida à Casa Branca, discutem sobre a possibilidade de o governo criar normas para furacões.

Reproduz-se então uma dinâmica conhecida, aos berros de "furacões não matam, o que mata são os destroços" e "o senhor é um idiota".

A sátira sobre o nível raso do debate político, inversamente proporcional à sua histeria, poderia ter ido ao ar ontem. Poderia visar o Brasil. Mas são os EUA, em 1999.

Não é exagero louvar a atração que a pariu –o "Daily Show com Jon Stewart", cujo último episódio antes de um novo apresentador vai ao ar nesta quinta (6) e poderá ser visto no site do canal Comedy Central nos EUA– como o mais atual dos programas sobre política.

Ao mesmo tempo, o talk show de 30 minutos que mistura entrevistas a notícias falsas e quadros com pseudocomentaristas geniais (vide Colbert e Carell) é uma iniciação à cultura dos EUA, um espelho invertido do país cuja imagem torta faz rir e pensar.

Somar humor rápido e instigante com o noticiário diário fácil de deglutir fez de Stewart, 52, uma das pessoas mais influentes dos EUA. Sua decisão de deixar o comando após 16 anos e 2.580 episódios abre um buraco na TV, impreenchível.

Seu acesso aos jovens de até 30 anos é inigualável no mundo do jornalismo político, conforme mostram pesquisas que citam o programa, desde 2004, como maior fonte de informação dessa fatia.

Ciente disso, o presidente Barack Obama não só foi três vezes ao talk show (a última, na semana passada) como recebeu o apresentador na Casa Branca duas vezes, 2011 e 2014, para ouvi-lo sobre o que pensa essa geração tão fundamental para sua eleição, revelou o "New York Times".

A ascensão de ambos está intimamente ligada e irmanada na capacidade de falar aos jovens. "Stewart foi uma influência essencial para a geração Y, que confiou nele para ter uma visão honesta das notícias, e o presidente sabe disso", disse ao "Times" Dag Vega, ex-consultor da Casa Branca para TV.

Apresentador e roteiristas tratam a questão com orgulho e também desconforto.

Em entrevista à Folha em 2004, o jornalista e então roteirista Tim Carvell, que depois viria a chefiar a equipe que escreve o programa e a comandar o "Last Week Tonight with John Oliver", disse que a situação os deixava "alarmados e aborrecidos".

Afinal, a população acreditava mais em um programa que inventava notícias do que nos telejornais de fato, vistos como contaminados pela polarização política. Um problema nada pequeno, que Stewart não se cansou de questionar e ridicularizar.

Quando o comediante se despedir nesta noite, com planos incertos e após entrevistas que ainda são mistério, espere sua habitual emoção (seu monólogo sobre os atentados do 11 de Setembro é memorável). Espere, sobretudo, um vazio perturbador.

Seu substituto, o ágil mas inexperiente Trevor Noah, terá uma missão descomunal.


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