Folha de S. Paulo


Para trazer Lisbeth Salander de volta, suecos até tornam autor recluso

Jan Collsioo/Associated Press
Stieg Larsson, morto em 2004; sua viúva não gosta de ver um novo autor com sua obra
Stieg Larsson, morto em 2004; sua viúva não gosta de ver um novo autor com sua obra

"Eu estava agora mesmo falando com um colega russo sobre a capa", diz Linda Altrov Berg, quase sem fôlego ao atender o telefone.

Altrov Berg, diretora de direitos autorais da editora sueca Norstedts, está finalizando os preparativos para lançar, em agosto, "A Garota na Teia de Aranha", sequência da trilogia "Millenium", de Stieg Larsson. Larsson morreu em 2004, e o novo livro foi escrito por outro autor sueco, David Lagercrantz.

Os livros originais, com sua memorável heroína gótica e hacker, venderam 82 milhões de cópias, e a sequência concorre apenas com "Go Set a Watchman", de Harper Lee, e "Grey", de E.L.James, pelo título de maior lançamento do ano. Coordená-lo é uma tarefa sem precedentes para uma editora sueca.

De seu escritório à margem da ilha de Riddarholmen, no centro velho de Estocolmo, a editora administra em detalhe o lançamento do livro em 27 países e quase isso de línguas. No dia em que conversamos, Altrov Berg havia recebido e aprovado as capas em hebraico, húngaro e islandês, além de marcado entrevistas de Lagercrantz para três empresas jornalísticas do Reino Unido, duas da França e uma da Hungria.

"Nós, na Suécia, tendemos a pensar que não somos importantes ou grandes, mas, nesse caso, nacionalmente e internacionalmente, a coisa está impressionante", diz ela. "Acho que pode ser o maior lançamento de 2015".

Lagercrantz, uma figura divertida e falastrona, foi recentemente despachado para uma remota ilha no arquipélago finlandês. Apenas em parte o objetivo era descansar antes dos dois meses de marketing ininterrupto que terá pela frente.

"Não sou muito bom em guardar segredos e você é um bom entrevistador, então vou acabar vazando muita coisa", ele disse quando participou em novembro do programa "Babel", o principal talk-show literário sueco, logo depois de terminar o livro.

No festival literário de Hay, em maio, ele causou um pequeno escândalo ao declarar que tinha inventado todas as declarações de "Eu Sou Zlatan", a autobiografia do jogador de futebol sueco Zlatan ibrahimovic, da qual foi ghost-writer.

Por isso, ele foi mais ou menos proibido de falar do quarto livro da série "Millenium", cujo título em sueco significa "Aquilo que Não Mata".

Tudo o que os fãs conhecem até agora sobre o livro é uma parca sinopse que menciona a Agência de Segurança Nacional (NSA) e o Vale do Silício, nos Estados Unidos, além de dois vídeos postados postados pela editora britânica no YouTube em abril: "Lisbeth Salander é uma psicopata?" e "Lisbeth Salander é um enigma".

Pelo restante deste mês, haverá uma breve pausa no trabalho quando a equipe da Norstedt desertará seus escritórios para suas respectivas férias de verão. A de Altrov Berg será na Sicília.

A máquina voltará à ação na primeira semana de agosto, quando Lagercrantz, que já deu mais de 20 entrevistas sob embargo, deve embarcar no que Altrov Berg descreve como "um grande arranque com jornalistas", com uma série de entrevistas em Estocolmo.

Imediatamente após o lançamento oficial, em 27 de agosto, ele fará uma turnê pela Europa e pelos Estados Unidos, e não deve voltar para a Suécia por mais do que alguns poucos dias até outubro. O sucesso está longe de ser garantido. "O meio literário da Suécia está muito, muito desconfiado com esse projeto", diz Martin Aagard, crítico do jornal sueco Aftonbladet. "É como se fosse vilipêndio a uma sepultura."

Divulgação
Daniel Craig e Rooney Mara em cena do filme
Daniel Craig e Rooney Mara em cena do filme "Os Homens que Não Amavam as Mulheres" (2011)

Eva Gabrielsson, companheira de Larsson durante anos, que perdeu uma amarga batalha contra o cunhado e o sogro pelo espólio do autor, está indignada. "Isto é apenas um negócio, porque você sabe que a editora está em crise financeira há alguns anos", ela diz. "É só uma questão de dinheiro."

A biografia de Zlatan, publicada pela arquirrival da Norstedt, Bonniers, foi um grande sucesso, então garantir Lagercrantz foi estratégico.

A ideia veio de Magdalena Hedlund, que administrava os direitos da Norstedt quando publicou a trilogia original e cuja agência hoje representa o fundo da família de Larsson.

Lagercrantz foi almoçar com ela para ver se sua agência tinha interesse em representá-lo. "Ele falou do quanto ele gosta de receber uma encomenda, algo que eu nunca ouvi um escritor dizer antes", lembra Hedlund. "Comecei a ter ideias."

Levou alguns meses para que a ideia virasse um acordo.

"Ele ficou um pouco assustado e disse que queria pensar no assunto", lembra Hedlund. "Então, a ideia cresceu com ele e sua mente ficou fascinada com a chance de fazer algo desse tamanho. Ele é muito corajoso e escreve muito bem."

Gabrielsson afirma que Larsson teria ficado horrorizado. "Ele não gostaria de ver alguém continuar seu trabalho", diz ela. "Não acho que seja OK sequestrar o trabalho dos outros."

Para ela, a vida privilegiada de Lagercrantz torna a invasão literária ainda pior. O pai de Larsson era um operário de fábrica no norte da Suécia. O de Lagercrantz era o editor-chefe do maior jornal de prestígio da Suécia, e sua avó era condessa.

Apesar disso, ele demonstrou uma habilidade peculiar em habitar vozes alheias. O mundo de Ibrahimovic, que cresceu em um dos mais notórios subúrbios de Malmö, é muito mais distante para ele do que o de Larsson, que, como Lagercrantz, viveu e trabalhou no Södermalm, um antigo bairro da classe trabalhadora de Estocolmo que hoje abriga a elite cultural.

A Norstedts fez imensos esforços para manter ocultos os conteúdos do livro. Lagercrantz e seus tradutores escreveram seus manuscritos em laptops desconectados da internet. Quando o último esboço foi completado, a Norstedts enviou uma única cópia impressa para cada uma das editoras internacionais com as quais havia trabalhado na trilogia original. No Brasil, a parceira é a Companhia das Letras.

"É absolutamente o projeto mais sigiloso em que já trabalhei", diz Hannah Robinson, diretora de publicidade da Quercus.

Ela estima que no máximo quatro pessoas leram a versão em inglês no Reino Unido, principalmente o publisher Christopher MacLehose, primeiro a publicar em inglês o trabalho de Larsson.

Ninguém recebe cópias antecipadas, deixando os resenhistas britânicos à espera de um café da manhã no escritório da Quercus, ao lado do rio Tâmisa, na manhã do lançamento.

A Quercus se preparou para o lançamento ao traduzir e publicar o romance policial escrito por Lagercrantz em 2009 sobre Alan Turing, o quebrador de criptografia da 2ª Guerra, e, no último mês, republicando a trilogia original de Stieg Larsson.

Mas, como a Norstedts e seu autor contratado sabem muito bem, todos os preparativos de nada servirão se eles julgarem errado, por algum motivo, o livro que estão prestes a publicar.

"Vivo apavorado o tempo todo, porque eu sei que a queda seria alta demais se eu fracassar", confessou Lagercrantz em sua entrevista à TV sueca no ano passado. "Já pensei em todo tipo de cenário, até em colocar óculos escuros, fazer cirurgia plástica e desaparecer."

Altrov Beg é mais prosaica: "uma coisa é o lançamento, outra são as vendas."

Tradução de MARCELO SOARES


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