Folha de S. Paulo


Copi diverte leitores com caricaturas cortantes do caráter argentino

O argentino Copi, pseudônimo de Raúl Damonte Botana (1939-1987), foi ator, dramaturgo, escritor e cartunista. Radicado em Paris durante a maior parte da vida, escreveu em francês suas principais obras. É o caso das novelas "O Uruguaio" (1973) e "A Internacional Argentina" (1988, em edição póstuma), lançadas pela Rocco em volume único.

"O Uruguaio" tem a forma de uma carta escrita por um discípulo que foge para Montevidéu e de lá escreve a seu mestre, tão amado quanto detestado, que permanece em Paris.

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O escritor argentino Copi, pseudônimo de Raúl Damonte Botana (1939-1987)
O escritor argentino Copi, pseudônimo de Raúl Damonte Botana (1939-1987)

A relação contraditória dá o tom do humor nonsense que fornece a base da escrita de Copi. A ideia de fuga repentina como a da distância continental entre os correspondentes permite também que Montevidéu seja apresentada por quem a vê como estrangeiro a alguém que não tem a menor ideia do que a cidade possa ser - um pouco como um viajante do século XVI relata a um europeu daquele período a realidade fantástica das terras recém-descobertas.

No relato de Copi, trata-se de uma realidade basicamente ininteligível, caracterizada pelo registro catastrófico. Há aí ao menos dois aspectos notáveis. De um lado, a geografia movediça do país, com dunas que permanentemente mudam tudo de lugar, incluindo as pessoas que morrem soterradas para depois ressurgir aos bandos, como militares, políticos, zumbis, frangos, porcos etc. Trata-se de uma proliferação abundante e libidinosa: até um papa argentino sodomita lá aparece, a aproveitar-se da extrema servilidade do presidente uruguaio.

De outro lado, potencialmente o mais interessante, mas sem grande fôlego ao longo da novela, são as instruções de leitura que, de modo invertido, o discípulo dá ao mestre, à maneira das vanguardas dadaístas, mas possivelmente inspiradas mais diretamente nas categorizações de Georges Perec (1936-1982).

A mais importante das instruções é a que determina que o mestre risque a carta na medida em que a vai lendo - gesto que comporia uma perfeita imagem da falta de memória do narrador. Perder a memória, portanto, equivale a perder a razão dos eventos, que se sucedem arbitrariamente, o que pode estar em compasso tanto com a arbitrariedade das ditaduras latino-americanas, como com a falta de sentido inerente à vida, que as regras do discípulo não preenchem, antes a evidenciam.

Em "A Internacional Argentina", o narrador é também um estrangeiro no exílio: desta vez, um poeta argentino que vive em Paris. Entretanto, o que o assombra não é o exílio ou a situação de estrangeiro, mas sim a contínua perturbação que sofre de outros argentinos que lá vivem ou aparecem, aos punhados, com projetos usualmente mirabolantes. Paris desaparece sob as bizarrias desses conterrâneos que parecem invadir todos os espaços da cidade. Tornar-se estrangeiro, ali, é quase uma impossibilidade.

O cerco se fecha quando o único negro argentino –, líder de uma multinacional familiar fabulosamente rica, toda composta de ex-escravos –, resolve bancar a candidatura do poeta à Presidência, a fim de que, em sua condição de poeta, transforme o patrimônio argentino da imaginação em realidade factual.

Os eventos e personagens que irrompem ao longo da novela - diplomatas que trazem animais selvagens como mascotes, biliardários africanos, assassinatos misteriosos, figuras exóticas a imitar certo glamour kitsch, hollywoodiano – parecem dar prova de uma exuberância vital, que afinal revela-se incapaz de saltar para além de seu reino delirante e imaginário.

Um livro a lembrar aqui seria o "PanAmérica", de José Agrippino de Paula, mas a comparação arruinaria a novela de Copi, cuja profusão caótica é muito menos sistemática e rigorosa do que a de Agrippino.

Se for para puxar outro fio brasileiro da novela, cabe notar que, segundo o narrador, "a Argentina sofria de um complexo de inferioridade em relação ao seu vizinho, o colosso brasileiro, pelo fato de não ter raízes negras".

Essa teoria de um racismo compensatório ganharia destaque se acrescentarmos que, ao apresentar a personagem do milionário negro decidido a bancar o lançamento da imaginação na política argentina, ele é descrito justamente pelo epíteto de "negro colossal".

Enfim, prevalece nas duas novelas o diapasão anedótico, tanto no sentido com que usamos o termo no Brasil, isto é, de humor piadista, evidente nos diálogos rápidos e cheios de réplicas, como no sentido francês, pertinente aqui, que diz respeito à descrição pitoresca e ao gosto tipológico.

De fato, Copi parece especialmente aplicado em divertir o leitor com caricaturas cortantes a respeito do caráter argentino. No âmbito desse horizonte criativo de alcance inevitavelmente limitado, faz tudo muito bem.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Unicamp.

O URUGUAIO
AUTOR: COPI
TRADUÇÃO Carlito Azevedo
EDITORA: ROCCO
QUANTO: R$ 34,50 (208 PÁGS.)


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