Folha de S. Paulo


Megaexposição na Pinacoteca reúne mestres do paisagismo britânico

Mais do que qualquer outra coisa, o céu "é o principal órgão de sentimento" de uma pintura –e esses sentimentos, não raro, beiravam a angústia, o desespero e o pavor.

Na virada do século 18 para o 19, o artista britânico John Constable resumia nessa frase um movimento artístico que chacoalhou a Inglaterra, com telas que evoluíram de singelas vistas pastorais a mares revoltos em tempestades.

Quase ignorando a revolução industrial que pretejava as cidades inglesas, artistas como Constable e William Turner, dois dos mestres que agora encabeçam uma megaexposição da escola paisagística do Reino Unido na Pinacoteca do Estado, foram buscar na representação da natureza, em toda a sua graça e fúria, um mundo de beleza alternativa.

Enquanto Londres e as cidades dos arredores se tornavam pesadelos urbanos, a pintura desses artistas inaugurou um movimento que entrou para a história como sublime –não o sublime em sentido estético puro, de beleza idealizada, mas aquilo que arrebata por sua violência iminente.

Não à toa, Turner se consagrou com imagens de barquinhos à deriva em mares apocalípticos e Constable não fez menos pintando céus de chumbo, com nuvens espessas asfixiando a luz solar sem deixar rastros de esperança.

Todo esse sofrimento aparece nas mais de cem obras da Tate Britain, de Londres, agora em São Paulo. Mas nem tudo ali é sublime, dentro da ala mais raivosa dessa vanguarda.

ANSIEDADES AMOROSAS

Ou seja, havia calma antes da tempestade. Em sentido cronológico, a mostra começa, aliás, com as cenas pastorais que marcaram a pintura britânica do século 18.

Nas palavras de Richard Humphreys, curador da Tate Britain que organiza a exposição, essas telas seriam a nada sexy "transposição para a pintura das ansiedades amorosas de um pastor".

Também segundo ele, é claro que isso evoluiu para obras que se firmaram como metáforas de um mundo em pânico com as mudanças e em busca de certa redenção.

Nesse sentido, Thomas Gainsborough, maior mestre britânico do século 18, tem na mostra o retrato de um simpático reverendo tocando violoncelo no meio de um jardim, ruínas romanas ao fundo. Do mesmo autor, outro quadro mostra um garoto levando vacas para saciar sua sede num lago de águas cristalinas mesmo num dia de tempo feio.

Em paralelo aos sonhos pastorais, artistas da mesma época também esquadrinhavam as paisagens britânicas em busca de representações mais realistas do ambiente, um movimento que servia à criação de mapas em última instância, mas estava ao mesmo tempo imbuído de um sentido de grandiosidade, refletindo a imagem do país como uma potência imperial.

De certa forma, George Stubbs, com sua obsessão pela anatomia dos cavalos de corrida, foi um cronista dessa era. Suas imagens da aristocracia britânica e seus bichos favoritos retratados até o último pelo da crina dão a dimensão do requinte exigido pela elite que aos poucos ia se intoxicando pela arte.

"Ele representa o lado mais científico dessa tradição de arte paisagística", diz Humphreys sobre Stubbs. "É fato que ele passou anos dissecando cavalos e chegou a publicar estudos sobre a anatomia desses animais. Tinha o mesmo conhecimento de um Da Vinci. Era obcecado pelo classicismo, sendo capaz de criar quadros quase fotográficos."

Na mesma veia fotográfica, seu contemporâneo Richard Wilson deu contornos precisos a paisagens que fascinaram os britânicos. Longe dos cavalos de Stubbs e pastores de Gainsborough, Wilson viajou pela Itália flagrando a visão decadente de ruínas romanas mergulhadas numa atmosfera de ar límpido e horizontes esverdeados.

Seduzido pelo bálsamo dessas vistas, Turner seguiu os passos desse paisagista que despontou no romantismo e foi também atrás de belas ruínas, sempre retratadas como pano de fundo de cenas mitológicas –na mostra está uma dessas paisagens embalando Dido e Eneias.

SPIELBERG SÉCULO 19

Mais trágico, John Martin, um seguidor um tanto histérico de Turner, também rememora uma tragédia, só que real. Num turbilhão de vermelho vivo, sua tela de 1822 retrata a destruição de Pompeia e Herculano no mar de lava que jorrou do vulcão Vesúvio.

Um dos trabalhos mais célebres do acervo da Tate Britain, esse quadro foi duro de engolir no alvorecer do século 19. Enquanto a crítica revirava os olhos, o público, lembra Humphreys, ficou mesmerizado pelo uso desmedido da cor e pela dramaticidade mais do que kitsch da tela.

"Ele estava mesmo jogando para a plateia", diz o curador. "Enquanto a crítica o achava vulgar, ele se colocava como um 'showman', era quase o Spielberg de uma época obcecada pela história, em que as pessoas queriam mesmo visões convulsivas, de drama, revolta e revolução."

Não muito tempo depois, Turner, já consagrado por suas tempestades, ia na direção contrária. Uma de suas telas de 1845, também na Pinacoteca, mostra uma das vistas mais célebres de Veneza em chave irreconhecível, perdida numa bruma esbranquiçada. Era a fúria arrefecida.

A PAISAGEM NA ARTE
QUANDO abre no dia 18/7, às 11h; de ter. a dom., das 10h às 17h30; até 18/10
ONDE Pinacoteca do Estado, pça. da Luz, 2, tel. (11) 3324-1000
QUANTO R$ 6


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