Folha de S. Paulo


crítica

A gênia Antony e as interrupções

Sem grandes alardes (ou melhor: sem nenhum alarde, ninguém que eu conheço ficou sabendo a tempo de comprar!), o Sesc Vila Mariana trouxe uma das mais brilhantes cantoras que ouvidos humanos já tiveram o privilégio de aclamar.

Antony Hegarty (que você, se for atualizado com as maravilhas do universo, conhece da banda Antony and the Johnsons) canta como se estivéssemos todos mortos, presenciando o mais importante e disputado concerto celeste.

Seus pés gordinhos tremem angustiados, inquietos, serpenteando seu corpo inteiro de dores terríveis e delícias marotas. Antony sorri, um híbrido assustadoramente puro de sexualidades, como se aceitasse com graça e prazer as mazelas insuportáveis de ter nascido. Só a figura dela já é uma obra de arte.

Alejandro García/Efe
Antony Hegarty, em show em Barcelona
A artista trans britânica Antony Hegarty durante apresentação em Barcelona, em 2015

Antes que um simples "ah" ressoe em milhares de partículas de perfeição por uma infinita atmosfera de joelhos, nosso coração já vem parar na boca, na mão, no chão, vagando. Ela (que pede, hoje, para ser tratada no gênero feminino ) só se concentra, ainda em silêncio, e já nos preparamos: vai sair agora um troço muito louco daquela mulher, um troço que não sai de nenhum outro lugar.

Uma coisa que esmurra o piano mas joga uma manta feita por vovozinhas em nossas cabeças. Uma doçura triste como 500 crianças dormindo sem saber quem são suas mães. Uma ópera intensa que é também uma canção de ninar.

Em muitas de suas belíssimas composições, ela deixa bem claro que tem medo da noite. Em "Hope There's Someone" (que não é do disco "The Crying Light" mas que, obrigada Senhor, é a música usada para abrir o seu show) Antony quer saber se vão "deixar ela descansar sua cabeça" quando se deitar. Em "You Are My Sister" ela deseja alguém que vele seu sono. A mulher sombria e frágil parece precisar de um abraço o tempo todo... ao mesmo tempo em que, gigante, soberana, estarrece a platéia, com uma força que consterna e eleva, por não parecer desse mundo.

Butô pode até ser uma coisa fantástica, não vou aqui dar uma de ignorante (eu sei que já estou dando, olha a maneira como comecei esse parágrafo). Mas fica pequeno perto de Antony, perdão. Em vários momentos, posso até dizer que me incomodou. O espetáculo se chama "Antony and the Ohnos" e celebra as performances históricas do falecido dançarino de butô Kazuo Ohno, com a presença de seu filho, Yoshito (e também abre a exposição "Dispositivo Ohno" no Sesc).

O telão descia, Antony ficava quietinha lá atrás esperando (gente! não! deixa essa mulher cantar! não interrompe ela pelo amor de Deus!), e a gente ficava por longos e chatos minutos assistindo Kazuo Ohno e sua turminha rolando por montanhas, com caretas surrealistas e movimentos minimalistas e descoordenados.

É legal, é arte, teve sua importância pro surrealismo, pro budismo, pra cultura japonesa, pro pós-guerra, pra invasão cultural ocidental (e principalmente para Antony, que conta em entrevista que tem uma foto de Kazuo ao lado da cama —uma personalidade de grande relevância para a formação de sua maravilhosa figura andrógina).

Tá, mas pelo amor voltem com Antony! Daí voltavam com Antony e lá vinha o Yoshito Ohno trazendo uma flor, um boneco, um espelho... tudo bem, bonito, mas... inferior à emoção causada pela voz daquela mulher. Marília Gabriela e seu filho Theodoro, que estavam sentados ao meu lado, insistiram muito comigo: "Não vai escrever besteira na Folha, butô é uma coisa linda e histórica!". Desculpa gente, não resisti.

Agora que os dois dias de show no Sesc acabaram (eu sei, você nem ficou sabendo, quando a Folha publicou sobre o show, os ingressos já estavam esgotados) posso dar o spoiler mais magnífico do ano depois do final de Mad Men. Antony encerra o espetáculo cantando "Can't Help Falling In Love", de Elvis Presley. Take my whole life too, Antony.


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