Folha de S. Paulo


Mário de Andrade estava à frente de seu tempo, afirma Beatriz Sarlo

A crítica argentina Beatriz Sarlo, 73, caminha com passos rápidos e discretos. Seus olhos, porém, estão sempre bem abertos. É o tipo de intelectual que não se contenta apenas em trabalhar encerrada entre quatro paredes, com o nariz metido em livros ou na tela de um computador. Viaja, escreve para jornais e participa de debates.

Para produzir seus ensaios, já percorreu festas de imigrantes bolivianos na periferia de Buenos Aires, assistiu a cursos de espanhol para coreanos residentes na Argentina, transitou entre os presentes ao funeral de Néstor Kirchner (1950-2010) e passeou pelas ruas do badalado bairro de Palermo.

Nilton Fukuda - 26.set.2006/Folhapress
A crítica literaria e ensaísta argentina Beatriz Sarlo em visita à Folha em 2006.
A crítica literaria e ensaísta argentina Beatriz Sarlo em visita à Folha em 2006.

Não por acaso, uma das entrevistas concedidas à Folha por ela foi no hall de um hotel nas ilhas Malvinas, no dia em que um grupo de jornalistas, argentinos e estrangeiros, foi pego de surpresa pelo anúncio de que o novo papa seria o ex-arcebispo de Buenos Aires Jorge Mario Bergoglio.

"Enganei-me naquele dia. Disse que Cristina não saberia lidar com o papa Francisco. Não foi o que aconteceu, mesmo!", reconhece.

A aventura nas ilhas britânicas, até hoje reivindicadas pelo governo argentino, é um dos capítulos do livro "Viagens – Da Amazônia às Malvinas", que a escritora lança no Brasil, em e-book, pela editora E-galáxia (R$ 16,90).

Sarlo é uma das convidadas da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) deste ano. Estará na mesa de abertura, nesta quarta (1º), às 19h, com Eliane Robert de Moraes e Eduardo Jardim, e em outra, no sábado (4), às 10h, com a jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho.

Ainda no sábado, às 17h, Sarlo participa da programação da Casa Folha. "Na abertura, vou falar de Mário de Andrade com uma perspectiva argentina. Nossa vanguarda foi completamente diferente", explica ela.

"Na mesma época, enquanto Mário tratava da mescla e buscava elementos da cultura popular, os escritores argentinos queriam criar um tom específico da língua hispânica do Rio da Prata. O que define nossos autores do período é a marcação de uma distinção com a Espanha."

EXPERIMENTAÇÃO

Ex-professora das universidades de Buenos Aires, Columbia, Berkeley e Maryland –as três últimas dos EUA–, Sarlo reforça que vê uma particularidade na produção brasileira.

"Mesmo se considerarmos o resto da América Latina, o tipo de experimentação feita por Mário de Andrade [1893-1945] só vai ser encontrado na produção de outros países 20 anos depois", reforça.

Ressalta, porém, que há paralelos entre a trajetória de Mário e a do poeta vanguardista argentino Oliverio Girondo (1891-1967), autor de "Calcomanías" e um dos criadores da mítica revista "Proa". Lembra também que a imprensa argentina, naquela época, passava por período de grande criatividade, principalmente com o trabalho de autores-jornalistas como Roberto Arlt (1900-1942).

PEIXE ELÉTRICO

No Brasil, Sarlo participará também do lançamento da revista digital brasileira "Peixe Elétrico", que tem como inspiração a "Punto de Vista", lançada em 1978 por ela e outros dois intelectuais de sua geração, Ricardo Piglia e Carlos Altamirano.

Assumindo uma posição de resistência à ditadura militar argentina (1976-1983), a publicação conseguiu lutar contra a repressão do regime e não deixou de circular.

Isso numa época em que a maioria dos grandes jornais silenciava-se quanto ao desaparecimento de pessoas e que jornalistas foram presos ou mortos. "Hoje posso dizer abertamente que os que deram dinheiro para tornar a revista viável foram assassinados. Eu não dizia nada na época, para não assustar os colaboradores, mas foi assim."

A princípio simpatizante do peronismo, abraçou na sequência o maoísmo. Após o fim da ditadura, começou a fazer críticas aos erros cometidos pela esquerda mais radical, pela luta armada, e apoiou a redemocratização do país, com a eleição de Raúl Alfonsín (1927-2009), em 1983. Hoje, Sarlo é uma ferrenha crítica da atual administração peronista de Cristina Kirchner.

A escritora se diz uma admiradora do Brasil desde cedo. Em 1970, com um grupo de amigos jovens e esquerdistas, viajou a Brasília. A ensaísta conta, em texto que também está em "Viagens", que todos se admiraram com o fato de não haver ninguém na Praça dos Três Poderes.

"Comparamos imediatamente com a Praça de Maio, em Buenos Aires, onde há sempre vendedores, turistas e manifestantes. Não concebíamos uma praça que não fosse desenhada para receber uma manifestação."

Mais tarde, visitaria o país como intelectual reconhecida. Em 1981, encontrou pela primeira vez Antonio Candido, que entrevistou para a "Punto de Vista". Além do sociólogo, também tornou-se amiga do crítico literário Roberto Schwarz e de Jorge Schwartz, professor de literatura latino-americana da USP.

"A última vez que vi Antonio Candido foi no ano passado. Ele me dizia da importância que a Argentina tivera nas suas leituras de juventude, em sua geração, e me fez refletir sobre como perdemos essa transcendência simbólica."

Ainda assim, Sarlo considera que, se a influência da produção literária argentina não é mais a mesma, há um bom momento no diálogo cultural dos dois países.

"Há mais traduções no mercado e mais recursos para que um estude ao outro, do ponto de vista acadêmico, sem ter de se deslocar tanto."


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