Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Filme nórdico 'O Cidadão do Ano' divide críticos; leia as resenhas

Surpresa espetacular ou exercício refinado que oferece muito pouco além de sucessão de mortes? Filme "O Cidadão do ano", exibido no Festival de Berlim de 2014, divide a opinião dos críticos.

Leia as resenhas de dois críticos da Folha:

GOSTEI - INÁCIO ARAÚJO

'O Cidadão do Ano' aposta na elegância sem perder a dimensão dos crimes

Não é o que se espera de um filme nórdico: ao sair da sessão, a primeira palavra que vem à cabeça é "espetacular". E é bem o que acontece com "O Cidadão do Ano".

A surpresa se duplica quando conhecemos a história: quando o filho é morto por engano numa questão que envolve drogas, o pai, cheio de ódio, decide vingá-lo. O pai é o sr. Dickman, respeitável cidadão local.

Sem sair da convenção, Dickman mata um, dois, três gângsteres, sem chegar nem perto do mandante do crime.

Mas ele é um sujeito na linhagem do velho "Desejo de Matar". Um "Desejo de Matar" que não fosse meramente ideológico. Mas também pode-se pensar nos filmes de Clint Eastwood ou Don Siegel em certos momentos, tal a metódica frieza com que trabalha o protagonista e a eficácia do estilo.

Pode-se pensar mesmo que Hans Petter Moland, diretor deste "thriller", inseriu ali não poucas piscadelas em direção a Quentin Tarantino.

Ao menos é nisso que faz pensar, por exemplo, um chefe do tráfico vegetariano e apaixonado pelo filho.

Ou conversas no carro, entre gângsteres que discutem o Estado de bem-estar social nos países frios e concluem que nas regiões quentes basta o calor, não há necessidade de bem-estar social.

Ou seja: assim como não se priva de ação, "O Cidadão do Ano" também não se priva de humor. Mas, se várias são as semelhanças com um tipo de cinema que os americanos faziam abundantemente (e bem), não são menos marcantes as especificidades.

GANGUES TRAFICANTES

O primeiro, o mais marcante aspecto, vem da neve. Abundante, onipresente. Tudo que ali não está gelado parece prestes a gelar. Os personagens saberão se queixar disso, claro.

Os conflitos raciais também estarão presentes, já que duas gangues de traficantes estão ali. Uma de nativos. A outra de sérvios (que o chefão norueguês chama, desdenhosamente, de albaneses).

Talvez o mais característico deste "Cidadão" seja, no entanto, a elegância. Há muito não se via um filme cheio de crimes em que as mortes fossem discretas –nem mesmo aparecem–, sem que por isso se perdesse a dimensão da violência implicada.

Por fim: como estamos num registro puramente pessoal –não se trata de postular o perigo que as drogas representam–, o filme pode se dedicar, de maneira sintética, mas não ingênua, a desenvolver as personagens.

O que tem de aparecer está no rosto, na expressão de atores como Stellan Skarsgård ou Bruno Ganz.

O CIDADÃO DO ANO
QUANDO: ESTREIA NESTA QUINTA (18)
ELENCO: STELLAN SKARSGÅRD, BRUNO GANZ
PRODUÇÃO: NORUEGA/SUÉCIA, 2014, 16 ANOS
DIREÇÃO: HANS PETTER MOLAND

NÃO GOSTEI - CÁSSIO STARLING CARLOS

Violência gráfica é único ponto de sustentação de trama vazia

"A vingança é um prato que se come gelado" é a mensagem que se extrai de "O Cidadão do Ano". Nada muito mais que isso.

O título original refere-se ao "poder de um idiota" (kraftidioten, em sueco)–no caso, um pacato funcionário público vindo da Suécia que trabalha na remoção de gelo na branca paisagem norueguesa.

Trata-se de uma variação do tema do olho por olho, já visto e revisto com bons ("Kill Bill", "Irreversível") e maus ("Desejo de Matar", "Busca Implacável") resultados.

O que muda um pouco são as características do lugar e o apuro visual que o diretor norueguês Hans Petter Moland, em seu oitavo longa, impõe com competência.

A sucessão de mortes que Nils Dickman conduz dá continuidade, por outros meios, ao trabalho de limpeza que ele realiza no cotidiano. A escória que ele elimina é composta na maior parte por traficantes e mafiosos vindos do Leste Europeu, além das fronteiras da "Europa branca e civilizada".

De um lado, vemos a brancura imaculada dos espaços. A única coisa que perturba esse equilíbrio visual é o sangue dos imolados. Os corpos-dejetos são, por fim, eliminados numa imensa queda d'água purificadora.

Se a conjunção de signos oferece camadas extras de leitura, na superfície "O Cidadão do Ano" aparenta ser mais um exercício refinado de estilo.

Toda a narrativa é construída a partir do princípio serial, com as mortes se encadeando como uma sucessão crescente e estatística.

CHOQUE VISUAL

Nas primeiras mortes, predomina o impacto gráfico e o choque visual. Essa elaboração, por sua vez, reverbera a anomalia dos atos de Dickman, que fora dali não passa de um perfeito idiota.

À medida que a série avança, o impacto direto é amenizado e a brutalidade passa a ser apenas sugerida.

Se o recurso visa evitar a previsibilidade da matança contínua, ele evidencia, no entanto, o esvaziamento da história, pois esta tem na violência gráfica seu único ponto de sustentação.

O próprio protagonista é um tipo vazio e vingar a morte do filho é o único motivo que dá certa substância ao personagem que Stellan Skarsgård encarna com sua face neutra e oca.

Em torno dele, as paisagens e relações são distantes ou rarefeitas, em contraste com o clã criminoso, em que o passional é evidente.

As qualidades visuais, contudo, são, como nos filmes do dinamarquês Nicolas Winding Refn, uma elaborada embalagem que depois de aberta oferece muito pouco.

O CIDADÃO DO ANO
QUANDO: ESTREIA NESTA QUINTA (18)
ELENCO: STELLAN SKARSGÅRD, BRUNO GANZ
PRODUÇÃO: NORUEGA/SUÉCIA, 2014, 16 ANOS
DIREÇÃO: HANS PETTER MOLAND


Endereço da página:

Links no texto: