Passados quinze anos do seu lançamento, "Morreste-me", obra que inaugurou a carreira do português José Luís Peixoto, é finalmente publicada no Brasil.
Não há ironia no fato de um livro dedicado à morte corresponder ao nascimento público do escritor, pois essa elegia, escrita com solenidade e contido lirismo, é também celebração da vida para o sobrevivente que carrega a memória como "vingança", como afronta ao mundo que pisoteia sua saudade.
À "mágoa indiferente deste mundo que finge continuar", o narrador oferece sua resposta: "Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei".
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O escritor português José Luis Peixoto, que virou guia da Coreia do Norte, posa para foto, na Coreia do Norte. |
ESCOLHAS LINGUÍSTICAS
Dividida em quatro partes, a narrativa serve como guia, no Brasil, para recuperação da nossa sintaxe, crescentemente depauperada desde a Semana de 22.
Crítica, aliás, que Manuel Bandeira fez ainda na década de 1920, na crônica "Um caso à parte", na qual recomenda o retorno urgente à "sintaxe lusíada" e afirma que o "modernismo era suportável quando extravagância de alguns".
Com a inusitada forma pronominal do verbo "morrer", José Luís Peixoto submete o idioma à dor e nos relembra que a morte nunca se restringe ao outro.
O autor reconstrói a força da língua portuguesa, como neste trecho, em que a luz enceguece: "Na berma da estrada, entre extensões amarelecidas de mato e cardos secos, entre searas gigantes de trigo, rompem ervas corajosas poucas, rompem papoilas que do fogo sangue das suas chamas ateiam o louro, o áureo".
SEM OBVIEDADES
Só um narrador consciente dos antagonismos que a passagem do tempo esconde poderia fazer com que morte e vida se defrontassem a cada página, num movimento incessante anunciado com perplexidade desde o início: "Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse".
Recusando obviedades estéticas, Peixoto elabora uma narrativa cujo luto cerrado esconde cuidadosa composição.
Veja-se, por exemplo, na Parte 2, como a ideia de movimento migra do automóvel à busca empreendida pela memória. E, linhas depois, se materializa na viagem noturna do carro funerário – para, a seguir, tornar-se presente nos avanços e regressos do narrador que, ao volante, ruma na direção do passado: "["¦] Cada quilômetro em frente é um mês que recuo".
Avançamos, sofremos e retornamos à vida com esse narrador que se impõe por não temer a "dor oceânica", por falar dela sem pieguice. Ele também nos seduz porque, na contramão da literatura atual, tem ousadia para, sem niilismo, falar da desesperança; e, sem chavões psicanalíticos, chorar a ausência paterna.
MORRESTE-ME
AUTOR José Luís Peixoto
EDITORA Dublinense
QUANTO R$ 29,90 (64 págs.)
AVALIAÇÃO bom