Folha de S. Paulo


'Erotismo ainda me fascina', diz Milo Manara, autor de HQ sobre Caravaggio

Aos 69 anos, o italiano Milo Manara não está mais interessado em ser o rei dos quadrinhos eróticos. Em seu novo livro, mulheres de seios fartos e coxas apetitosas são coadjuvantes, prostitutas que atuam como modelo para o personagem principal, Michelangelo Merisi, o Caravaggio (1571-1610).

No primeiro volume da biografia, "Caravaggio - A Morte da Virgem", Manara adota o naturalismo e os incríveis efeitos de claro-escuro, tão bem representados por Caravaggio, para descrever a trajetória do mestre do "cinquecento".

Bebedeiras, brigas e assassinatos são os ingredientes da tumultuada jornada de Caravaggio, descrita a partir de sua chegada a Roma, em 1592, cidade na qual tornou-se um dos pintores preferidos do papa, desenhando perfeitas imagens de Nossa Senhora –criadas à imagem e semelhança das meretrizes que eram suas manequins.

Em entrevista à Folha, Manara contou que, para reproduzir tantos detalhes, realizou extensa pesquisa, num processo que incluiu leituras e representações de desenhos, recopiados a mão, um a um.

Falou ainda sobre o fascínio pelo conterrâneo: segundo ele, o pintor fez as mulheres mais bonitas da história da arte e, diante de Caravaggio, Manara se considera "um mosquito".

Confira trechos da entrevista:

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Folha - Sua marca registrada, o erotismo, está menos presente em suas obras recentes. Por que?

Milo Manra - Talvez por razões de idade? Cada estação tem seus frutos.

O fato de o senhor ser conhecido como mestre do erotismo lhe cansou?

Me embaraça um pouco o termo "mestre", não "o erotismo". Se estivesse cansado, tentaria evitá-lo. Ao contrário, o erotismo sempre me apaixonou e continua a me fascinar.

Quando foi que ele primeiro atraiu seu interesse?

Ao atingir a idade na qual mais ou menos todos os seres humanos despertam para o erotismo. A diferença é que eu decidi desenhá-lo. Mas não fui o único. Na verdade, quando comecei a representar o erotismo, no fim dos anos 1960, ele e a liberação sexual estavam em voga. Ambos foram importantes para a renovação de costumes e para a cultura de massa.

Quando o senhor decidiu que sua próxima HQ seria uma biografia?

Meu desejo não era fazer uma biografia, mas, sim, contar a história de Caravaggio, um grande artista que me fascinou no fim da infância, quando descobri sua obra.

Por que ele e não outro pintor?

Me surpreendi com a verdade que havia em suas pinturas. Ao contrário de outros do mesmo período, que representavam os santos e martíres em posições exageradas e artificiais, Caravaggio os mostrava de uma maneira natural, como pessoas reais.

Mais tarde, quando o estudei, me fascinei pela assombrosa modernidade com a qual ele construía suas composições, orientando os modelos como atores e utilizando a luz artificial, como faria um diretor de cinema hoje. Ele não era igual aos seus contemporâneos, que faziam dezenas de desenhos preparatórios antes de iniciar um quadro.

Não existem esboços de Caravaggio. Ele organizava os manequins no cenário, explicando a cada um deles seu papel. Ajeitava a luz até obter o efeito dramático e teatral que queria.

Então, em vez de filmar, ele retratava a cena com o realismo que seu milagroso talento lhe permitia.

Como se preparou para realizar essa biografia?

Foi o mesmo processo de quando trato outros temas históricos. Pesquisei profundamente, tanto no plano narrativo, lendo tudo o que há sobre o argumento, quanto no visual, com base em pinturas, gravuras, estampas e desenhos da época.

Nessas pesquisas, descobriu algum segredo sobre Caravaggio?

Recopiando à mão suas pinturas de maneira diligente e fiel, percebi, pela primeira vez, que Caravaggio era um pintor extraordinário de mulheres.

As suas são, talvez, as mais belas, verdadeiras e modernas mulheres da história da arte. Elas se parecem realmente com as "donnas" que encontramos pelas ruas.

Qual ponto de vista da biografia de Caravaggio mais lhe atraiu?

A vida dele foi tumultuada, fora dos padrões e repleta de aventuras, ingredientes apropriados para uma boa história em quadrinhos.

Mas os aspectos fascinantes são sua rebeldia e intolerância. Ele desafiava as autoridades, às vezes era impetuoso e violento.

Contudo, demonstrava ternura surpreendente ao tratar com os modelos e os amigos, e tinha grande compaixão pelos pobres e negligenciados.

O livro não trata muito da sexualidade do pintor. É verdade que ele era homossexual?

Estou trabalhando intensamente no segundo volume da biografia, no qual falarei mais sobre isso [ainda sem data de lançamento]. Mas não considero esse o argumento central para tratar de sua gigantesca personalidade.

Por vingança, um pintor rival o acusou de ser gay. Naquela época, muitos homossexuais eram condenados à morte. O fato de Caravaggio não ter sofrido nenhuma punição me faz crer que o juiz desconsiderou a denúncia. Certamente, eu não terei mais elementos do que esse juiz para dizer o contrário.

Seguiu o mesmo processo criativo de seus trabalhos anteriores?

Para Caravaggio, me aproximei ao máximo de sua pintura, de sua atmosfera escura e dramática. Adotei um estilo mais realista e trabalhei com sombras mais do que costumo fazer.

Quanto às cores, pela primeira vez recorri a um computador, me atendo em utilizar a mesma palheta de Caravaggio.

Assustou-lhe a ideia de recriar o estilo de Caravaggio?

Naturalmente, estava ciente das dificuldades que encontraria, ainda que, durante o processo, elas tenham se mostrado mais árduas do que o previsto. Mas não tive medo. Na verdade, estava entusiasmado. Me senti como um alpinista: se a montanha o assusta, nem comece a subir.

Qual a influência de Caravaggio em suas HQs?

Para a minha profissão, seu ensinamento mais importante foi a vocação narrativa ilustrativa. Ele não tinha interesse em demonstrar como era bom pintor. Queria representar bem uma cena, apresentando-a da forma mais eficaz e potente.

Esse se tornou também meu objetivo. Claro que, diante desse gigante, sou um mosquito.

Quais são os artistas que mais o inspiraram?

São tantos! Posso dizer que toda a história da arte é uma fonte contínua de inspiração. Naturalmente, com alguns tenho maior afinidade, mas seria impossível enumerar: de Botticelli a Rembrandt, passando por Paolo Veronese, Dürer, Rafael, Picasso, Klimt, Kandinski, Böcklin... Antes ainda Prassitele e Fidia. Em suma: todos.

Quando descobriu sua vocação?

Como todo mundo. Na infância. Toda criança, antes de falar, desenha. É o primeiro modo de representar e se relacionar com o mundo.

A diferença fundamental entre o homem de neandertal e o homo sapiens é que este desenhava, enquanto o outro, não. Com o sapiens, a humanidade passou a se relacionar com o planeta, representando-o.

O senhor disse em entrevistas que desenhar é uma maneira de entender o mundo. Pode falar sobre isso?

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Se olharmos ao redor, tudo o que vemos nas cidades, as casas, os prédios, as portas, as janelas, os automóveis, as roupas, tudo o que está construído, antes, foi desenhado.

Vivemos num mundo nascido a partir do desenho. Aplicando o processo inverso, entendemos como as coisas foram concebidas. O mesmo princípio vale para os homens, animais, árvores.

Desenhando tudo o que vemos, como fazia [o pintor Henri] Matisse, penetramos em profundidade na própria estrutura do visível. Isso foi amplamente demonstrado por Leonardo da Vinci, que, com suas pinturas, pôde explicar segredos do Universo.

Qual o mundo de Manara?

Segundo [o pintor suíço] Paul Klee, se o trabalho precisa ser explicado, então, ele está errado. A obra deve explicar-se por si só.

Se eu, depois de 40 anos de carreira, milhares, milhões de desenhos, ainda não consegui dizer como é o meu mundo, então perdi a vida miseravelmente. Me dê uma esperança de que isso não aconteceu e não me faça explicar o meu mundo.

CARAVAGGIO - A MORTE DA VIRGEM
AUTOR Milo Manara
EDITORA Veneta
QUANTO R$ 59,90 (64 págs.)


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