Folha de S. Paulo


Mostra traz a SP universo fantástico que Miró criou na Espanha franquista

Uma igrejinha branca se equilibra quase que por milagre sobre um penhasco no vilarejo de Mont Roig -monte vermelho em catalão e nome do triste povoado nos arredores de Barcelona onde Joan Miró arquitetou algumas de suas obras mais fantásticas.

Em ruínas, a capela no alto do morro aparece num dos primeiros quadros do surrealista espanhol como a ponta celeste de uma obra quase sempre terrena, muitas vezes pintada com tinta e areia sobre trapos, papéis manchados e retalhos de madeira.

Esse contraste entre os pés firmes no chão e o olhar nas nuvens orientou a obra de Miró, morto aos 90, em 1993. Também dá o tom de uma retrospectiva dedicada ao artista que começa no dia 23 de maio no Instituto Tomie Ohtake, a maior mostra do surrealista já realizada no país.

Divulgação/Successio Miró/Miró, Joan/AUTVIS
Dois Personagens Caçados por um Pássaro', pintura de Joan Miró, de 1976
'Dois Personagens Caçados por um Pássaro', pintura de Joan Miró, de 1976

Na exposição, mais de cem obras de Miró deixam claro que, por mais etéreas que sejam suas composições, com mulheres e pássaros flutuando em céus cheios de estrelas, o artista nunca abandonou uma ligação umbilical com a terra onde nasceu.

"Sem essa relação com a Catalunha, sua obra não teria esse impacto", diz Rosa Maria Malet, diretora da Fundação Joan Miró, em Barcelona. "O vento forte que sopra aqui, o azul do céu, o vermelho da terra e suas formas agrestes deram espontaneidade às telas."

Também deram lastro à obra de um artista que lutou contra convenções. Miró queria passar nas telas a experiência mediterrânea e a violência da Espanha na ditadura de Francisco Franco, que foi dos anos 1930 aos 1970, coincidindo com o seu auge criativo.

Seu traço, aliás, foi perdendo a fluidez para se tornar cada vez mais errático e brutal.

"Olha essas manchas no chão. Aqui está o sangue da vítima. Era um quadro", diz Joan Punyet Miró, neto de Joan Miró, apontando para marcas de tinta no chão do antigo ateliê do avô em Palma de Mallorca, a ilha na costa espanhola onde o surrealista passou os últimos anos de vida.

Não é só uma estranha frase de efeito. O drama nas palavras do neto tem a ver com a famosa declaração de Miró que, nos anos 1920, disse querer "assassinar a pintura".

Miró tinha ódio das convenções. Daí a decisão de devassar a tela, ou muitas vezes jogar fora um quadro para pintar sobre madeira, lixas, trapos, toalhas e até mesmo pinturas de estranhos que comprava em mercados de pulgas.

"Ele comparava pintar sobre madeira, inspirado pelos nós e manchas da superfície, a como os poetas trabalhavam o som das consoantes", diz Teresa Montaner, da Fundação Joan Miró. "Vem daí sua linguagem de signos, que é muito particular. Ele queria fundir pintura e poesia, eliminando tudo que era supérfluo."

De fato, Miró foi abandonando ao longo dos anos as naturezas-mortas e paisagens figurativas que pintou em chave cubista para construir arquiteturas mais fluidas, de linhas soltas –espaços etéreos habitados por estranhos seres flutuantes que ele chamava de pássaro, personagem, homem ou mulher.

"Mas ele não faz o retrato de uma mulher determinada, por exemplo", diz Montaner. "Miró reduz a ideia de mulher a um conceito como fertilidade ou a ideia de terra como elemento que regenera a vida, em especial nos anos 1930, com a Guerra Civil Espanhola, em que ele tenta expressar um sentimento de tragédia."

Na mostra paulistana, será possível observar a evolução de todos esses seres. Depois de começar a pintar em Barcelona, onde nasceu, e mais tarde em Mont Roig, nos arredores da metrópole, onde seus pais tinham uma casa de campo, Miró foi viver em Paris nos anos 1920.

Lá, ele conheceu o movimento surrealista, liderado por André Breton, e poetas da vanguarda literária francesa. Isso explica sua tentativa de traduzir na pintura a potência mínima das palavras, como se cada elemento visual do quadro correspondesse a uma sonoridade específica.

Da mesma forma que um alfabeto tem um número determinado de letras, Miró reduziu seu vocabulário visual a um punhado de personagens, que surgem em diferentes versões, mais e menos abstratos, ao longo dos anos.

Nos cenários lisérgicos que tentou plasmar a partir do contato com os surrealistas, Miró acabou desenvolvendo o que críticos chamam de morfologia do inconsciente.

AMOR E DESAMOR
Mas é nesse ponto que o artista diverge do clã surrealista, com quem teve uma longa relação de "amor e desamor", nas palavras de Montaner, já que ao contrário de Salvador Dalí e do resto da turma de Breton, Miró não tentou retratar seus sonhos.

Mesmo suas abstrações mais alucinantes têm raízes nítidas na experiência que teve nos vinhedos de Mont Roig e nas memórias de um país mergulhado na pobreza e na violência. É como se nas telas Miró criasse uma espécie de realidade alternativa, de céus estrelados, para refletir as agruras de seu país.

"Ele usa sempre os mesmos elementos combinados de formas distintas para chegar a essa junção harmônica entre o céu e a terra", diz Jordi Clavero, outro especialista da fundação que abriga as obras do artista em Barcelona. "É por isso que ele gosta tanto da figura dos pássaros, que podem voar e transitar entre esses dois mundos."

Sua paixão por céus carregados de memórias ancestrais, aliás, deu origem à sua série mais célebre, as "Constelações". São 23 pequenas pinturas em que mulheres, pássaros e estrelas flutuam num firmamento colorido, um delírio inspirado pela fuga do artista, que começou essa série ao deixar Paris, no início da Segunda Guerra.

Enquanto o conflito devastava a Europa, Miró começava a ganhar fama no exterior, em especial em Nova York, onde era representado por uma galeria e teve obras expostas no MoMA nos anos 1940.

Esse contato com a vanguarda norte-americana, então dominada pela obra de expressionistas abstratos como Jackson Pollock e Mark Rothko, impulsionaram uma nova fase no trabalho de Miró, que decidiu se mudar, nos anos 1950, para Palma de Mallorca e passou a pintar sobre superfícies inusitadas com gestos um tanto brutais.

Miró dizia sentir uma "resistência em fazer coisas belas, uma revolta contra as técnicas tradicionais", algo que o levava a experimentar com os "materiais mais sórdidos e incongruentes".

Foi ao longo dos anos 1960 e 1970 que ele passou a pintar seus quadros direto no chão, a exemplo de Pollock, que arremessava a tinta sobre a tela. Miró também passou a privilegiar o negro em traços cada vez mais grossos na composição, evocando uma violência associada à morte.

O último ato dessa pesquisa cada vez mais radical foi a série em que Miró decidiu queimar suas pinturas, vendo como o fogo, que ele dizia ser dotado de "uma força mágica e inventiva", era capaz de criar composições insuspeitadas.

"Ele queria fazer uma pintura abstrata que saísse de sua alma. Dizia que tinha uma força vital e não podia deixar de trabalhar", lembra o neto do artista. "Cada dia mais perto da morte ele trabalhava com mais violência. Pintar era quase um ato de exorcismo."

O jornalista SILAS MARTÍ viajou a convite da Fundação Abertis.

JOAN MIRÓ
QUANDO abre em 23/5, às 11h; de ter. a dom., 11h às 20h; até 16/8
ONDE Instituto Tomie Ohtake, r. Coropés, 88, tel. (11) 2245-1900
QUANTO R$ 10


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