Folha de S. Paulo


Boom de séries de áudio nos EUA estimula nova 'era de ouro' do rádio

No fim de semana da Páscoa, a segunda parte de "A Fine Balance", a suntuosa adaptação dirigida por John Dryden do romance de Rohinton Mistry "Um Delicado Equilíbrio", de 1995, foi ao ar na BBC Radio 4.

Gravada perto de Mumbai, com elenco indiano, sua colagem densa de barulhos das ruas, música e fragmentos de reportagens de televisão seria acompanhada atentamente no iPod pelo jovem produtor americano Fred Greenhalgh.

Alguns anos atrás, Greenhalgh trabalhou com Dryden na gravação de outro thriller ambientado na Índia, "Severed Threads", e a experiência lhe deixou uma impressão duradoura.

Elise Bergerson/New York Times
A jornalista Sarah Koenig em gravação de um episódio de
A jornalista Sarah Koenig em gravação de um episódio de "Serial", em Nova York

"Fiquei intrigado com o modo como Dryden dirigia. Pensei 'ele tem um orçamento todo da BBC, mas rejeita os recursos do estúdio e vai gravar na rua'. Não é apenas a acústica, é o senso de intimidade com os atores. Adoro isso."

Esse encontro entre o americano e o britânico tem ressonância ainda maior hoje, quando o audiodrama passa por momentos interessantes em ambas as margens do Atlântico.

Nos Estados Unidos, o renascimento do podcast - coroado pelo sucesso retumbante da história de não ficção ""Serial" - também está levando a um boom no audiodrama. Financiados por anunciantes, distribuidores de podcasts assistem a um número recorde de downloads de dramas, como "The Truth", a série de vinhetas isoladas de Jonathan Mitchell.

Tudo isso aponta para o crescimento do áudio nos EUA e também no Reino Unido, onde os radiodramas da BBC ainda atraem um público semanal de 6,7 milhões de ouvintes. Mas os desafios enfrentados pelas duas culturas radiofônicas parecem ser diametralmente opostos.

À medida que a procura por essas plateias novas continua, outros dramas radiofônicos produzidos por emissoras públicas fracassaram.

Em 2012 a canadense CBC eliminou seu orçamento para radiodramas. Analistas canadenses nostálgicos louvam o que veem como o modelo esclarecido da BBC, financiado por uma licença paga pelos ouvintes, mas, como comenta o roteirista e veterano analista de radiodramas Laurence Raw, muitos profissionais criativos hoje querem produzir dramas longe de emissoras públicas. "A BBC não é tudo o que existe", argumenta Raw. "O setor do drama independente está encontrando modos diferentes de criar e produzir."

HORAS VIVAS

É exatamente isso o que está acontecendo nos Estados Unidos. Para Johanna Zorn, diretora executiva do Festival Internacional de Áudio Third Coast, a narrativa de áudio no país "vive um momento de faroeste". A Third Coast, sediada em Chicago, é curadora de uma coleção de 15 mil podcasts de todo o mundo anglófono. Zorn, que se descreve como "evangelista do podcast", fala de sua alegria crescente por ver a cultura do áudio decolar.

"Aquelas horas antes mortas em que você está no carro ou na cozinha agora estão sendo preenchidas pelas pessoas que ouvem histórias em áudio, de ficção ou não ficção", ela diz. "'Serial' veio apenas confirmar para um público mais amplo esse aumento de talento e interesse que temos visto acontecer."

Para alimentar essa demanda, diz ela, os produtores americanos precisam ter garra e espírito empreendedor, criando redes de podcasts como a Radiotopia, financiada por anúncios: "Antigamente o produtor tinha que bater à porta de uma estação de rádio pública, mas com a internet e os smartphones podemos prescindir disso".

Enquanto a Third Coast trabalha principalmente com material de não ficção, em Nova York a professora e produtora de rádio Ann Hepperman planeja uma plataforma semelhante para o audiodrama, a ser lançada em junho.

O projeto, que gira em torno de um prêmio para audioficção, será "uma revolução", ela prevê com confiança. "Trabalhos de audioficção estão sendo criados em todo o país, mas este projeto vai finalmente oferecer uma só 'casa' para todos esses produtos", comenta.

Heppermann também é assessora editorial de "The Truth", uma série de "contos" produzidos por Jonathan Mitchell que é o drama do momento nos Estados Unidos. Os episódios incluem uma versão falsa da missão do Apollo 11, em que a nave cai na Lua, ou um que destaca a confusão de um homem preso num encontro fantasmagórico e eterno com uma mulher.

AUDIBLE

Acompanhados de anúncios ou de pedidos de doações dos ouvintes, outros trabalhos americanos de ficção pouco tradicionais disputam a atenção do público.

Enquanto isso, Fred Greenhalgh, o colega de John Dryden em "A Fine Balance", está seguindo um rumo diferente. Ele se prepara para lançar este ano seu próprio seriado dramático na Audible, a distribuidora de audiolivros da Amazon. Tendo acabado de encomendar seus próprios audiodramas, ele explica, "a Audible devia estar se perguntando se esse novo interesse do público iria crescer".

Para Greenhalgh, a Audible é apenas uma solução entre outras existentes nos EUA. Ele elogia a diversidade de comprimentos e formatos, que vão de "The Truth" ao drama de sobrevivência pós-zumbis "We're Alive". "A BBC cria grandes coisas, mas seus formatos de 45 minutos seriam limitantes aqui. Qualquer ideia de que nosso audiodrama devesse seguir um formato global acabou depois da era de ouro da década de 1940. Estamos redescobrindo esse gênero, criando algo novo", diz ele.

Cortejar ouvintes novos não é apenas uma questão de plataforma e formato, mas também de autenticidade, espontaneidade e atualidade. Para um dos diretores da BBC, Boz Temple-Morris, "em seus melhores momentos a rádio pode chegar a lugares que a TV não pode".

Ele tem experiência direta disso: quando estava dirigindo o radiodrama "Occupied", seu elenco se misturou com manifestantes num protesto na loja de departamentos londrina Fortnum & Mason. O próprio Temple-Morris acabou sendo detido e levado a uma cela da polícia, coisa que não fazia parte do roteiro.

Tradução de CLARA ALLAIN


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