Folha de S. Paulo


Memórias de 'padre louco' ganham edição em livro

Loucura total ou estilo literário inovador?

Eis a questão suscitada por Milton Gurgel Praxedes, para a qual não há resposta clara.

Dom Gurgel, como ficou conhecido, escreveu, editou e vendeu por conta própria diversos folhetos sobre a própria vida. A editora Veneta agrupou parte desse material em "Agonia de um Padre Casado", primeira edição profissional de textos dele, que chega agora às livrarias.

Revista 'O Cruzeiro'/Reprodução
Dom Gurgel come grilos e gafanhotos durante o programa de TV de Silvio Santos em 1971
Dom Gurgel come grilos e gafanhotos durante o programa de TV de Silvio Santos em 1971

O livro impressiona por dois motivos. Primeiro, pelos infindáveis quiproquós nos quais ele se envolveu. Segundo, pela maneira insólita que encontrou de narrá-los.

Gurgel nasceu em 1922, no Rio Grande do Norte. Ainda era garoto quando uma benzedeira lhe fez uma previsão certeira -uma vida embaraçada, com um abismo tremendo a lhe perseguir.

Aos 17 anos entrou para o Exército. O recruta Gurgel, nas palavras do próprio, era "magricela, banguelo, raquítico, desajeitado". Por imperícia própria ou armação dos colegas, foi inúmeras vezes repreendido. Certa vez, acabou preso por deserção.

Reprodução
Dom Gurgel em imagem do livro
Dom Gurgel em imagem do livro

O pior golpe veio em abril de 1964. Considerado subversivo, foi afastado do Exército pelo Ato Institucional Nº 1 da ditadura militar.

Passou então por várias ocupações (dono de bar, guarda, repentista, guia de cego) antes de encontrar um novo norte: a fé. No começo dos anos 1970, fundou sua própria ordem religiosa, originada de uma ala dissidente da Igreja Católica Romana, na qual o celibato foi abolido.

A sede da igreja ficava no Jardim das Oliveiras, zona leste de São Paulo, e chegava a reunir centenas de fieis. Para financiar a construção da igreja, Gurgel foi em 1971 ao programa de auditório de Silvio Santos, então exibido pela Globo, e comeu no palco grilos e gafanhotos por um cachê de 500 cruzeiros.

"Já provei vaga-lumes também, mas fiquei dando choques e a minha mulher não gostou", declarou na época.

Em meados dos anos 1980, Gurgel voltou ao Rio Grande do Norte, onde morreu em 2004, aos 82 anos.

CORDEL SOFISTICADO

Rogério de Campos, diretor editorial da Veneta, ouviu falar de Gurgel pela primeira vez nos anos 1980, quando um amigo do movimento punk fez vastos elogios aos textos dele. Campos leu e também achou sensacional.

Há poucos meses, foi procurado pela família de Gurgel, interessada em editar o material. Analisou os manuscritos e selecionou os trechos que compõem o volume.

"Ele criou uma literatura popular muito original", diz. "Fez um elo entre o cordel e a sofisticação. Tudo com muito humor. É difícil até classificar o que escreveu."

Realmente o leitor fica desnorteado ao tentar acompanhar o fluxo do pensamento de Gurgel. De uma frase para outra ele pode saltar no tempo (passado, presente e mesmo o futuro), no espaço (Natal, Belém, São Paulo, Recife), de profissão e até mesmo de nome (Arigó, Zé da Olaria, padre Grilo, por exemplo).

As frases são curtas, irônicas, cheias de elipses. Gurgel reclamava da pobreza, confessava pecados e bebedeiras, bradava contra o mundo contemporâneo. (leia abaixo)

Rezava por si, pela família, pelos amigos e pedia que Deus abençoasse a "todos da novela 'Roque Santeiro'".

Agonia de um Padre Casado
Dom Gurgel
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Quase 30 anos antes de morrer, narrou num delírio a própria morte: "Uma santa ao lado de um satanás. Andorinha e dólar. Voando, subindo. Acabando. Baixei à sepultura. Terra, terra e terra".

Barbudo, quase sempre de batina, com fala e hábitos inusitados, Gurgel ganhou fama de maluco. Muitos vizinhos fugiam dele como o diabo foge da cruz, contam os filhos.

Por sinal, a prole de Gurgel foi tão extensa quanto suas desventuras. Ao todo, 16 filhos (atribuía o vigor sexual ao hábito de comer insetos).

Doze dos filhos nasceram no segundo casamento, todos eles de nomes excêntricos -Mansglio, Maderfrânio, Mupamixades, Mazotopísteles.

"Não era um pai comum. Vivia num mundo próprio, na imaginação dele", conta Mansglio, 55. "Mas quem o conhecia de verdade gostava muito dele. Abrigava na nossa casa mendigos, prostitutas, bandidos. Muita gente que não tinha onde cair morta foi ordenada na igreja dele."

AGONIA DE UM PADRE CASADO
AUTOR Dom Gurgel
EDITORA Veneta
QUANTO R$ 39,90 (216 págs.)

TRECHO

"Seis doses. Oito cervejas e cinco conhaques. Tomei banho, ou melhor, a empregada me banhou. Madorna. Caranguejo. Conhaque. [...] A empregada saiu do banheiro. Dona Lurdes, minha mulher, terminou de me limpar. No outro dia deu as contas à empregada. A coitada [...] estava buchuda."


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