Folha de S. Paulo


Cartunista do 'Charlie Hebdo' narra infância na Líbia e na Síria em HQ premiada

Loirinho e de mãe francesa, ele não era considerado um "sírio real" quando vivia na Síria. Na França, onde nasceu, tampouco o viam como francês, devido ao pai sírio e ao nome exótico: Riad Sattouf.

"Isso me permitiu olhar para as coisas pelo lado de fora, sem nunca sentir que era parte de um povo", diz à Folha o quadrinista, que desenhou por oito anos no jornal satírico francês "Charlie Hebdo", alvo de atentado em janeiro.

Sattouf publica agora no Brasil a primeira parte de seu premiado "O Árabe do Futuro", no qual descreve a sua infância entre 1978 e 1984.

O gibi, que venceu neste ano o festival francês de Angoulême (o mais importante dos quadrinhos), se beneficia desse olhar externo, com o qual Sattouf descreve histórias de sua privilegiada infância.

O privilégio não era material. Filho de um professor idealista, Sattouf cresceu primeiro na Líbia do ex-ditador Muammar al-Gaddafi e, depois, na Síria de Hafez al-Assad, pai do atual ditador, Bashar al-Assad. A vida não tinha os confortos da França.

Mas foi um privilégio, diz o autor, poder ter vivido as experiências históricas do "Estado das massas" criado por Gaddafi, na Líbia, onde por exemplo a família de Sattouf perdeu sua casa porque a porta não estava trancada –a residência foi tomada, assim, por outra família.

Também notáveis foram seus anos em torno de Homs, cidade hoje destruída pela guerra civil na Síria.

Mas a política não é o assunto de "O Árabe do Futuro", e sim a infância de Sattouf. Os episódios históricos estão no fundo das cenas –como quando o seu pai ouve as notícias no radinho– mas não são centrais na narrativa.

"O que eu entendia, e contei no livro, é que meu pai tinha a sensação de que a história estava sendo construída e ele pensava que tinha um papel a desempenhar, que ele seria chamado de uma hora para a outra, enquanto vivia numa pequena e perdida vila perto de Homs", diz Sattouf.

Essas memórias são organizadas, no gibi, em paletas específicas. As lembranças da Líbia, por exemplo, são amareladas e poeirentas. Na Síria, são vermelhas como a terra local. Na França, azuladas como o céu da Bretanha. "Eu percebi que as minhas memórias tinham cores."

Não são apenas as cores que destoam entre as nações. Sattouf registra também a diferença entre as pessoas. As crianças recebem uma atenção em especial, já que eram com quem o quadrinista interagia nessa época.

O Árabe do Futuro
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Durante o curto período em que vai à escola na França, Sattouf não consegue se comunicar com os colegas de classe, que se reúnem no recreio sem dizer lé com cré.

"As crianças francesas eram menos maduras do que as crianças na nossa vila [na Síria]. Eram mimadas, protegidas. Eram bebês. No vilarejo, as crianças eram largadas sozinhas desde muito cedo."

E cresciam em um regime totalitário que ainda não se encerrou. A família de Sattouf deixou a região e se refugiou em países vizinhos. "Não tenho contato com eles há algum tempo", afirma.

"Não me ressinto daquelas experiências de maneira alguma", diz, sobre os perrengues de sua infância, nos anos 1980. "Foi uma chance enorme ter essas perspectivas diferentes. Mesmo sendo, às vezes, perigoso. Eu tive a chance de passar por aquilo."

O ÁRABE DO FUTURO
AUTOR Riad Sattouf
TRADUÇÃO Debora Fleck
EDITORA Intrínseca
QUANTO R$ 39,90 (160 págs.)


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