Folha de S. Paulo


Música de Mozart tomou conta de Bogotá durante a Semana Santa

Um grande festival internacional de música clássica tomou conta da capital da Colômbia durante a Semana Santa: Bogotá Es Mozart (Bogotá é Mozart) apresentou, em quatro dias, 63 concertos (sendo 17 gratuitos) em 15 palcos diferentes, todos dedicados a composições do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791).

É fato que, durante as duas últimas décadas, a cidade implementou importantes projetos de humanização e reformas dos espaços públicos, alguns dos quais tomados como modelo por outras cidades das Américas (inclusive no Brasil); é também natural que a qualidade de seu clima de montanha –Bogotá está a mais de 2.600 metros acima do nível do mar– e o potencial de seus equipamentos culturais favoreçam a realização de grandes eventos artísticos.

A unidade obtida em torno de um único evento monotemático é, entretanto, um acontecimento raro e incomum. Mesmo em São Paulo –cidade da América do Sul que tem provavelmente a temporada de música clássica mais equilibrada, extensa e variada da atualidade– as dissonâncias entre prefeitura, Estado e entidades privadas tornariam muito difícil algo similar.

Bogotá lançou-se a Mozart com segurança e obstinação dignas dos Aurelianos e José Arcadios Buendía, personagens que povoam as páginas de "Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Márquez (1927-2014), o mais famoso romance colombiano.

Quem assina a direção artística do festival é Ramiro Osorio Fonseca, ex-ministro da Cultura, diretor do Teatro Mayor Julio Mario Santo Domingo e líder de uma equipe afinada e gentil. Ainda um dia antes do término do evento, ele exibia uma planilha que mostrava a virtual ocupação máxima de público em todos os teatros.

Juan Ruy Castaño/Divulgação
Concerto da Orquestra de Câmara de Viena no festival internacional Bogotá es Mozart
Concerto da Orquestra de Câmara de Viena no festival internacional Bogotá Es Mozart

TEATRALIDADE INSTRUMENTAL

Um festival temático permite não apenas a imersão na obra de um autor forte, mas também comparações entre intérpretes, regentes, solistas e sonoridades diversas. Leigos e especialistas aproveitam igualmente.

Em 35 anos de vida, Mozart escreveu mais de 600 obras. Há um humor melancólico em muitas delas. E muita teatralidade: seus temas instrumentais são como personagens com vida própria, que ocupam a cena e contam sua história antes de virarem memória. Ele parece se divertir em nos surpreender.

Na quinta-feira (2), a Camerata Salzburg (da cidade natal do compositor) regida pelo francês Louis Langrée (um convidado frequente da Osesp) trouxe o refinado pianista austríaco Till Fellner no "Concerto n.23", além de fazer uma impecável "Sinfonia n.34". Os 1.300 lugares do Teatro Mayor estavam lotados no insólito horário das 13h30.

Às 17h, ouvimos a sonoridade fina do leste alemão da orquestra Staatskapelle Halle regida pelo espanhol Josep Caballé, com o "Concerto n.4" para violino solado por Isabelle Faust, musicista que dispensa apresentações entre os especialistas.

Logo depois, às 20h30, a Orquestra de Câmara de Viena –de sopros inigualáveis–, com solo de piano (no "Concerto n.24") e regência do austríaco Stefan Vladar foi especialmente memorável na interpretação da "Sinfonia n.41", a última composta por Mozart.

O mesmo Vladar fez um recital de piano solo no dia seguinte (3) no Teatro Colón (no centro histórico de Bogotá). No programa, as sonatas n.8, n.10 e n.5, sendo que esta última também foi apresentada ao fortepiano (precursor do atual piano de concerto) pelo holandês Ronald Brautigam no Teatro Estudio (no sábado 4).

Imprevistos musicais também ocorreram, como a quebra vocal da soprano Deborah York em um ponto culminante da "Gran Missa em Dó Menor", fato que desestabilizou o concerto da noite de Sexta-feira Santa (3); também as principais orquestras colombianas –Filarmônica de Bogotá e Sinfônica Nacional–, embora bem preparadas, mostraram claros limites.

Na parte externa do Teatro Mayor, barraquinhas com todo tipo de comidas populares e fast food (a preços também populares) contrastavam com a sofisticação da sala, que visualmente se parece um pouco com a parte interna do teatro da Cidade das Artes, no Rio de Janeiro (mas a colombiana ganha na acústica). Não há restaurantes refinados.

Nem para o público nem para os organizadores pareceu necessário justificar por que Mozart, ou mesmo por que música clássica. E com exceção de uma excelente oficina de crítica musical a cargo de Juan Angel Vela del Campo, do "El País" (Espanha), não houve nenhum evento didático paralelo. Bastou a música de Mozart para unir Bogotá com o mundo.

O crítico SIDNEY MOLINA viajou a convite do Festival Internacional de Música de Bogotá


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