Folha de S. Paulo


'Cidadãoquatro' é um filme sobre coragem, diz diretora Laura Poitras

Em janeiro de 2013, a documentarista norte-americana Laura Poitras recebeu um e-mail criptografado de alguém que se intitulava "Citizenfour".

"De agora em diante, toda a fronteira pela qual você passar, ligação que fizer, site que visitar estará nas mãos de um sistema cujo alcance é ilimitado -mas cujas salvaguardas não. Peço apenas que você faça com que essas informações cheguem ao público americano."

As palavras, sabe-se hoje, eram de Edward Snowden, então ainda analista sênior na NSA, a agência de segurança americana, com 29 anos. Elas abrem "Cidadãoquatro", o documentário de Poitras que levou o Oscar de 2015 e estreia no Brasil neste domingo (12) no festival É Tudo Verdade.

Marcam também o início de uma relação que levou ao maior vazamento de informação confidencial da história, por meio de reportagens assinadas por Poitras e o jornalista Glen Greenwald, e a uma crise política internacional em torno das práticas de vigilância dos EUA e do Reino Unido.

Quase dois anos depois, diz Poitras em entrevista à Folha, houve uma "mudança radical" de consciência sobre as espionagem maciça e preventiva usada pelas agências dos dois países, mas os governos ainda demoram a agir.

"Há vários sinais de que a oferta de criptografia aumentou, e acho que as empresas de tecnologia sabem que seus clientes se importam com privacidade. Mas a coisa mais desanimadora é a resposta do governo. Não apenas do governo americano, mas internacionalmente, em termos de adotar essas políticas."

Para ela, ainda que novas tecnologias possam ajudar as pessoas a aumentar a privacidade, os governos deveriam criar novas formas de regulação. "Precisamos de políticas capazes de regular a tecnologia. Temos políticas que regulam armas, quer dizer, é isso que governos fazem, ou esperamos que eles façam".

O Brasil é um exemplo positivo de resistência, afirma, mas Dilma Rousseff deveria voltar atrás de decisão anterior e dar asilo político a Snowden, hoje vivendo na Rússia de Vladimir Putin -que não é o "lugar onde ele deveria estar", diz Poitras. "A NSA tem operado em total impunidade no mundo todo. Governos deveriam pressionar os EUA."

Leia, abaixo, trechos de entrevista que a diretora concedeu à Folha

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FOLHA - Como "Cidadãoquatro" se relaciona com seus outros dois filmes sobre os EUA depois do 11 de Setembro ["My Country, My Country" (2006) e "The Oath" (2010)]?

LAURA POITRAS - Tenho trabalhado nessa série de filmes por mais de uma década. O primeiro filme documentou a guerra no Iraque, e o segundo é sobre Guantanamo [prisão americana em território cubano que abriga acusados de terrorismo], e esse é sobre vigilância. Sabemos que depois do 11 de Setembro diversas coisas aconteceram. Começamos a criar a estrutura do que a gente vê hoje, como a guerra no Iraque e no Afeganistão, e também a NSA espionando cidadãos americanos, e usando informações de maneira muito mais indiscriminada, de pessoas que não são suspeitas. Venho tentando contar essa história, da direção que o meu país tomou e questionando: é essa a direção que queremos? É esse o país que nós queremos ser?

Se você tivesse que resumir o que aconteceu depois do 11 de Setembro, o que diria?

O que temos visto é uma ampla expansão dos poderes do governo e da confidencialidade, e um distanciamento de princípios básicos do Estado de Direito. Temos decisões tomadas em segredo, sem supervisão democrática, temos ações unilaterais e uma cultura de impunidade, por meio da qual o governo americano pode fazer coisas como torturar pessoas, mantê-las em Guantanamo por mais de uma década sem nunca ser responsabilizado, e ninguém é cobrado por essas coisas. Temos um governo que persegue delatores, jornalistas, ou seja, as pessoas que estão tentando cobrar o governo e acabam sendo responsabilizadas.

E que papel a comercialização e globalização da internet teve nesse processo?

É bastante difícil separar essa comercialização desse aumento de poder governamental. Com a internet, a gente tem empresas privadas guardando uma vasta quantidade de informação sobre cidadãos, e temos uma capacidade pequena de fiscalizar como essa informação pode ser usada e vendida.

Qual a importância desses gigantes da tecnologia nessa nova configuração de poder?

Eles têm um enorme poder. Um enorme poder econômico, um enorme poder cultural. No caso dos documentos da NSA, é um pouco ambíguo, você teve diferentes companhias que cooperaram. O Twitter foi um dos que mais resistiu aos esforços do governo para coletar informações dos clientes. E, claro, do outro lado do espectro, vemos a Microsoft, que, como Glen [Greenwald, jornalista que ajudou a vazar os documentos] revelou, parece mais do que disposta em prover informação, é uma relação muito mais próxima.

Então, há todo um espectro de cooperação com essas agências, mas o que certamente podemos dizer é que essas companhias concentram uma quantidade enorme de poder. Google sabe com quem todo mundo fala, sabe sobre qual é a sua agenda, tem uma quantidade enorme de informação pessoal sobre as pessoas. Mas, apesar de isso me deixar nervosa, acho que quando o governo está fazendo isso é uma ameaça ainda maior para a democracia, porque tem poder de processar pessoas.

Quase dois anos depois das revelações feitas por Edward Snowden, quais são os resultados?

É uma questão aberta, estamos numa espécie de encruzilhada em termos das decisões que temos de tomar. Houve uma mudança radical de consciência em relação aos perigos da vigilância. Estamos vendo uma mudança de tecnologia também. Há vários sinais de que a oferta de criptografia aumentou, e acho que as empresas de tecnologia sabem que seus clientes se importam com privacidade.
Mas a coisa mais desanimadora é a resposta do governo. Não apenas do governo americano, mas internacionalmente, em termos de adotar essas políticas. Acho que o Brasil é um dos exemplos positivos, resistindo mais a esse tipo de vigilância. Mas, em geral, eles têm sido lentos para agir e fazer mudanças substanciais. Espero que, com mais pressão, [isso mude]. Cidadãos não querem ser espionados.

Que tipo de papel o Brasil deve ter?

O Brasil é [um país] representativo, tem muito poder. Acho que ele pode fazer uma porção de coisas, e tem feito. Quando Dilma [Rousseff] não foi à Casa Branca [em 2013] em protesto por ter sido espionada, aquilo foi uma mensagem política muito forte. Acho que a Europa, Brasil e outros países da América Latina deveriam oferecer asilo político a Edward Snowden. Há evidência suficiente de que os EUA têm espionado não apenas os países que são considerados ameaças, mas também países aliados. A NSA tem operado em total impunidade no mundo todo. Governos deveriam pressionar os EUA.

*Você acha que Dilma cometeu um erro ao não aceitar Edward Snowden como exilado? [O ex-espião diz que pediu asilo, mas o Itamaraty afirma que nunca o fez oficialmente]*

Acho que vários países deveriam ter oferecido asilo a ele. A Alemanha [cuja chanceler, Angela Merkel, também foi espionada] também deveria ter oferecido asilo. Brasil, França. É uma situação complicada, porque se qualquer país fizer isso ele vai ter que oferecer garantias de que Snowden não será extraditado. Em algum momento algum país vai aparecer e oferecer a ele um lugar para ficar. Rússia não é o lugar onde ele deveria estar nem o lugar onde ele gostaria de estar. É uma questão de tempo.

Sendo tão anti-establishment, por que "Cidadãoquatro" ganhou o Oscar?
É uma boa pergunta, não sei. É um filme anti-establishment, eu concordo com você. Mas há uma tradição de filmes ant-iestablishment em Hollywood. As pessoas simplesmente gostam dessas histórias. Mas eu também fiquei surpresa. Havia uma alta chance de ele ser rejeitado, porque existe muito apoio a Obama em Hollywood.

Como você vê Barack Obama?

É decepcionante. Ele tinha algumas boas intenções, mas decidiu fazer alguns compromissos políticos. Não acho que seu legado será bom. Manter Guantanamo aberto é um pesadelo nacional, o programa de "drones" [aviões-robô usados para vigilância e ataque a inimigos em países distantes] é um legado horrível e houve a expansão da espionagem. Todos concordamos que o 11 de Setembro foi uma enorme tragédia, e ocorreu essa reação exagerada.

O filme parece ser uma biografia sobre Snowden, mas ao mesmo tempo é sobre algo muito maior.

Tenho feito esse tipo de filme há muito tempo, no qual eu estou interessada numa questão e tento achar alguém que me possibilite explorar essa questão por meio de suas vidas. No final, não é uma biografia, não é um filme sobre Snowden, Glen ou sobre mim, é um documento sobre algumas ações particulares, as ações por meio das quais Snowden se tornou um delator, e a reação a isso. Então, em certo sentido, é mais um filme sobre coragem do que um filme sobre vigilância. Quando as pessoas fazem isso, você não entende. Elas desistem de tudo. Toda a vida delas, toda a comunidade delas, toda a carreira delas, amizades, relacionamentos se despedaçam quando a pessoa fazem essas denúncias.

Qual foi sua primeira impressão de Snowden?

Nós dois [ela e Greenwald] ficamos chocados que ele fosse tão jovem. Depois, ficamos realmente chocados com quão calmo e articulado ele era, dado o que ele estava arriscando. Eu pensaria que uma pessoa, ao saber que a vida dela, como ela a conhece, estava acabada, estaria supernervosa. Mas ele não, ele estava supercalmo. A gente percebeu depois que ele passou muito tempo tomando essa decisão, acho que ele disse: "olha, não há o que fazer, acabou", e ele só queria nos dar o que ele pudesse no tempo que ele tinha.

Que tipo de relação você tem com ele hoje?

Mantenho contato com ele, falei com ele alguns dias atrás. Ele é uma fonte. Nós não somos amigos no sentido de eu falar sobre a minha vida pessoal, e eu não sei nada sobre o que ele faz na Rússia.

Agora, você não passa por esse tipo de relacionamento com uma pessoa sem criar algum tipo de laço que é diferente de qualquer outro tipo de conexão. Ele me contatou do nada, eu era uma completa estranha e tomou a decisão de que a vida deles estava nas minhas mãos por um certo período de tempo. Se eu cometesse um erro, ele terminaria na prisão ou pior. É mais ou menos esse tipo de relacionamento. Não sei se há uma palavra para isso.

Como você acha que Snowden será compreendido a longo prazo?

Obviamente ele estará nos livros de história [risos]. Acho que a história vai mostrar que ele prestou um serviço a todos nós, o que significa dizer: "Olha, essas tecnologias existem, os governos estão coletando essas informações, e precisamos conversar sobre o que é certo, o que faremos, como será nosso futuro -vamos viver num universo orwelliano ou queremos um caminho diferente?". Acho que a história vai olhar para trás e dizer ou "ele estava certo, e deveríamos tê-lo entendido" ou "graças a Deus que a gente ouviu ele".

Você está sob vigilância, eu suponho.

Eu suponho também. Eu ficaria mais surpresa em saber que não estou do que em saber que sim. Eu imagino que as agência de inteligência, não apenas a do meu governo, mas várias outras, têm tanto eu quanto Glen [Greenwald] sob vigilância.

Podemos esperar mais delatores? Isso faz parte do espírito do nosso tempo?

Eu colocaria de uma maneira diferente. O vazamento não é parte do espírito do nosso tempo, o vazamento é um sintoma do aumento da confidencialidade e das transgressões da lei por parte do governo.

CIDADÃOQUATRO
DIREÇÃO LAURA POITRAS
PRODUÇÃO EUA, ALEMANHA, 2014
QUANDO DOM (12), ÀS 21H, E DOM. (19), 15H, NO CINE LIVRARIA CULTURA


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