Folha de S. Paulo


'Caboclos foram injustiçados', diz diretora de documentário sobre guerra dos Constestados

Há 12 anos, a jornalista e cineasta Marcia Paraiso, 45, mudou-se do Rio para Florianópolis. Na capital catarinense, começou a produzir documentários sobre temas relacionados ao ambiente e à sociedade.

Quando filmava o documentário "Mulheres da Terra", em 2010, teve contato com o povo caboclo do Estado. Foi a semente para o "Terra Cabocla", sobre a guerra do Contestado (1912-16), conflito de origem camponesa motivado principalmente, segundo Paraiso, pela disputa pela terra, como ela conta na entrevista a seguir.

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Folha - "Terra Cabocla" mostra que a guerra do Contestado foi muito além da "questão religiosa", de "fanáticos" em luta. Coloca a questão da disputa pela terra (e do avanço do capital estrangeiro) no centro. Por que a rebelião é tão desconhecida?

Marcia Paraiso - A guerra foi uma guerra camponesa. Ela que foi silenciada pelo fato de o Brasil, até os dias de hoje, entre todas as classes sociais, viver um tabu em relação à propriedade da terra. Não se discute seriamente reforma agrária e não se respeita as populações tradicionais, aquelas que à terra pertencem. A terra está no centro da questão. O que vem junto e circunda o entendimento da frase de José Maria (o monge revoltoso): "Quem tem mói, e quem não tem mói também".

O argumento de fanatismo religioso é uma falácia. O que estava em jogo e era proposto nos chamados "redutos santos" era uma nova ordem política. O Contestado foi uma batalha sem líderes. Os monges já tinham morrido e a guerra se acirrou, se perpetuou. O que se buscava eram direitos à terra, à educação, à religião. Eles seguiam o que Jesus Cristo pregava: queriam a igualdade social e uma sociedade sem capital, longe do comércio, dos bens materiais. Isso incomodava e incomodava muito.

Há hoje uma releitura do Contestado entre os historiadores? Seu filme faz parte desse movimento?

Não considero que exista um movimento. O tema ficou restrito durante muito tempo aos pesquisadores militares. Gerações, como a minha, estudaram pelas cartilhas produzidas por um governo militar, com controle e silenciamento sobre a história.

Estudar e pesquisar essa guerra é fascinante. Sinto é que há uma corrente de pesquisadores que, ao se deparar com o tema, vai além da academia. Há uma veia de paixão que move aqueles que se dedicam a estudar o planalto catarinense e a guerra.

Quem viaja pela região se depara com um povo humilde, digno, com sabedoria sobre a força da natureza e com uma religiosidade e tolerância, que se perpetuam por gerações.

Os caboclos foram injustiçados e até hoje sofrem pela guerra. A religião pregada pelo monge João Maria é chamada pelos historiadores de um "catolicismo rústico". Eu não curto muito essa definição. Eu chamaria de uma "evolução no catolicismo".

Por que o filme defende a tese de que a guerra deixou marcas de apartheid social e abriu caminho para o "branqueamento" da região?

Basta viajar pela região. Onde está a população cabocla? Depois de perder suas terras para projetos de colonização europeus e gaúchos, a população tradicional teve dois caminhos. Ir para a periferia das cidades e trabalhar nas indústrias de madeira e de maçã (as monoculturas da região) ou tentar retomar a terra, por meio do movimento social organizado, das ocupações de terra. No Taquaruçu o apartheid é totalmente visível, é explícito. É gritante a desigualdade entre as condições em que vivem italianos e caboclos. E explícitos os preconceitos raciais e sociais.

A concentração de terras aumentou depois do conflito? Como é hoje?

Passada a guerra, o processo de colonização seguiu adiante e vitorioso. Como os caboclos eram posseiros e ainda estavam na condição de perdedores da guerra, eles não tiveram alternativa. Não tinham papéis, documentação sobre a terra. E, mesmo se tivessem, não acredito que isso seria levado em conta.

Hoje, quem visita a região se depara com uma cidade como Treze Tílias, por exemplo, totalmente austríaca, em meio ao território contestado. Há também muitas empresas estrangeiras que exploram pínus e eucalipto e possuem grandes propriedades. Quando se tira a possibilidade de acesso à terra, sustento e a base daquelas famílias por gerações, se desestabiliza uma cultura e se rompe com um equilíbrio, inclusive ambiental.

Como a população pode retomar suas terras que foram invadidas? A alternativa é o movimento social organizado. E é no MST que muitos tiram seus documentos pela primeira vez, aprendem a ler e escrever, e compreendem a história e os direitos pelos quais deveriam lutar. Ali eles entendem que também são cidadãos, passam a ter voz, se empoderam.

Há muita controvérsia sobre dados, número de mortes na guerra. Por quê?

Muito do que foi registrado a respeito de datas, de relatos de ataques aos redutos e sobre baixas de rebeldes, civis e de militares tem relação direta com o controle do exército, com aquilo que se queria relatar O exército fala de 10 mil mortos entre os rebeldes. E entre 800 e mil militares. Fala ainda de 20 mil mortos extra-rebeldes —os que morreram nos incêndios e ataques às vilas. Mas a população local, os descendentes daqueles que lutaram e vivenciaram a guerra, fala em muito mais.

A região, ao contrário do que é hoje, era bem habitada naquela época. Era um território que servia de caminho para tropas e de posto de abastecimento de erva mate entre tropeiros de São Paulo, Rio Grande do Sul e até Argentina. O planalto catarinense era riquíssimo em araucárias, todo coberto pela árvore nativa daqui do Sul. As famílias eram numerosas, com muitos filhos para ajudar nas tarefas do campo. Conhecendo a região nesse um ano e meio que fiquei viajando e conversando com as pessoas, realmente acredito que foram mais de 20 mil mortos. Quantos, nem eu nem os pesquisadores sabemos precisar.

O que a surpreendeu ao fazer o documentário?

Descobri que todo o material fotográfico sobre a guerra foi "produzido", foi tudo pensado pelos militares, em especial pelo general Setembrino de Carvalho. Depois de Canudos, especialmente após a publicação e a repercussão de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, o exército ficou com péssima imagem. No Contestado, não temos nenhum registro documental; o que se tem é marketing. Todo o material já produzido por meus colegas, em ficção também, sinto que coloca o caboclo como um ignorante, como um ser isolado do mundo. Esse documentário é uma tentativa de fazer um registro que coloque o povo caboclo como protagonista.

Como foi essa operação de "marketing do exército"?

Em 1914, no momento de transição entre Hermes da Fonseca e Wenceslau Braz, o general Setembrino de Carvalho foi nomeado para comandar uma nova atuação na região do Contestado. Ele logo percebeu as falhas de atuação até então. Não só em relação às derrotas sofridas. Havia um erro estratégico total. As vestimentas dos soldados eram inapropriadas para o clima frio da região e havia ausência de medicamentos. Mais importante: havia resistência por parte do Paraná, que não acreditava que o exército brasileiro daria conta do conflito e propunha que os "coronéis locais" assumissem o combate.

Setembrino foi buscar a atenção e a comunicação direta com o Ministro da Guerra e criou uma estratégia que envolvia também o marketing. Há que se atentar de que a Alemanha era o grande modelo militar para o Brasil nessa época. Setembrino queria apresentar para a sociedade brasileira um novo exército, com uma imagem de modernização. Para isso contratou um fotógrafo oficial, o sueco Claro Jansson, que fez 87 fotografias oficiais da atuação do exército brasileiro na Guerra do Contestado.

As fotos, muitas publicadas na imprensa da época, funcionavam como uma forma de mostrar uma nova imagem e eram uma tentativa de atrair os filhos da classe média para o alistamento militar, que até então não era obrigatório. O número de soldados envolvidos no conflito foi o maior usado como repressão em um conflito social no país até então (seis mil homens e mais mil civis recrutados entre os coronéis locais —os chamados "vaqueanos").

Setembrino ainda divulgou o uso da aviação pela primeira vez em um combate militar. Fotografou o comandante Kirk e sua aeronave. Ele tombou em testes, antes do primeiro combate. Mas o registro fotográfico causou a impressão de que, finalmente, o exército brasileiro se encaminhava para a modernização. Todas as fotos, se forem bem observadas, foram construídas, posadas. São praticamente peças publicitárias.

Que fim levou a empresa Lumber, a madeireira que está no centro da revolta?

A empresa norte-americana Southern Brazil Lumber and Colonization (Lumber), pertencente ao Grupo Farquhar, recebeu do governo brasileiro, para construção da ferrovia, 15 km de cada lado da estrada de ferro. Desapropriou 6.696km2 de terras, 276.694 alqueires, que o próprio governo brasileiro declarou como terras devolutas, desconsiderando toda a população de posseiros que habitava tradicionalmente ali. Toda a madeira extraída foi exportada. Trabalho infantil, escravo e castigos físicos eram práticas da empresa.

Em 1938, Getúlio Vargas estatizou a madeireira, que continuou a atuar até 1951. Desde 1956, as terras da Lumber foram cedidas ao Exército brasileiro, que possui, até hoje, uma base militar de acesso restrito, o Campo de Instrução Marechal Hermes.

Por que você resolveu fazer esse filme?

Há 12 anos eu vim morar em Florianópolis com minha família. Fomos vítimas da violência urbana no Rio de Janeiro. Vim buscar aqui uma vida mais sossegada, mais próxima a natureza. Produzi documentários sobre temas relacionados ao ambiente e sociedade. Entre os novos amigos, colegas, conhecidos o que eu mais escutava reforçava a imagem que eu tinha do Estado —um lugar de descendentes de europeus. Nos morros que abraçam a ilha e, isoladamente, em algumas regiões, percebia a presença da população negra. Muitos tinham vindo do interior, muitos de outros Estados. Nunca tinha ouvido falar do povo caboclo catarinense.

Em 2010, fiz o documentário "Mulheres da Terra", sobre o movimento de mulheres camponesas no oeste do Estado e o resgate das sementes crioulas. Todas as personagens eram tipicamente europeias, italianas ou alemãs. Até que com uma das personagens, em Faxinal do Guedes, Rosalina, foi tudo diferente. Ali, reconheci a cultura cabocla, o conhecimento da floresta, das ervas. Ela me disse: "Eu tenho o sangue caboclo, sou pé no chão". Saí dali já com a semente do "Terra Cabocla". Mas seria impossível falar do povo caboclo e não falar da guerra. Então optei por esse recorte do filme.

Fiquei tão envolvida com a temática que já estou trabalhando em outro documentário, o "Joaninos", sobre a fé e os seguidores de São João Maria, que são muitos, de todas as idades e classes.

Como está o lançamento de "Terra Cabocla"?

O filme, que foi produzido em um ano e meio, ainda não tem uma distribuidora. Depois do lançamento em Florianópolis (28 de março, sábado, às 20h, no cinema do CIC, Centro Integrado de Cultura), vamos levar o filme para o circuito das cidades do Planalto Catarinense. No dia 1º de abril, quando se completam 100 anos do massacre final no reduto de Santa Maria, hoje município de Timbó Grande, estaremos lá com o meu projetor portátil. Quero mostrar o filme para os caboclos, filhos, netos, bisnetos daqueles que combateram e tombaram na guerra, para os seguidores de São João Maria.

Qual é a sua trajetória profissional?

Sou formada em jornalismo e tenho mestrado na área da análise do discurso da imagem, ambos pela Universidade Federal Fluminense, em Niterói, no Rio. Mas nunca atuei no jornalismo. Desde os tempos da faculdade, lutei para ser documentarista independente. Com Ralf, meu companheiro, fundamos a Plural Filmes, no Rio, em 1993. Fizemos juntos documentários e curtas.

Recentemente elaboramos a série Visceral Brasil —as veias abertas da música, sobre mestres e grupos que fazem a nossa música de raiz, exibida na TV Brasil. Em janeiro deste ano terminamos de filmar o primeiro longa, "Lua em Sagitário", uma ficção que começa na fronteira da Argentina e tem como um dos personagens principais um rapaz que nasceu e cresceu em um assentamento da reforma agrária. É um filme voltado para o público adolescente que pretende falar de preconceito. Será distribuído pela Elo Company e lançado em circuito comercial ainda este ano.


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